O reconhecimento do
aborto do feto anencéfalo – ou a interrupção prematura da gravidez, a depender
da consideração – apresenta suas origens no ano de 2004, quando a Confederação
Nacional dos Trabalhadores da área da saúde – na condição de entidade de
classe, portanto, legítima ativa para tal – concebeu a proposição da ADPF 54.
Com amparo jurídico do então advogado Luís Roberto Barroso, propusera-se o
pedido de interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do
Código Penal Brasileiro, ou seja, requeria-se não enquadrar a interrupção
prematura de gravidez do feto com anencefalia no tipo penal de aborto, tendo em
vista sua inviabilidade e os múltiplos transtornos das gestantes nestes episódios.
Uma questão
controvertida como tal – como se vê na própria divergência entre os segmentos
religiosos, enquanto amicus curiae,
na intervenção – semelha ser, na prática, um tanto menos abstrusa, se analisada
a contraposição que a sustenta: de um lado, tem-se a defesa da não violação da
autonomia da gestante sobre o próprio corpo, diante de um feto que não terá
como viver e que, em caso de não interrupção da gravidez, traria a mulher grandes
probabilidades de doenças como hipertensão e depressão; já pelo outro polo,
tem-se a advocacia de que o feto tem os entes abstratos da “humanidade” e do
“valor intrínseco”. Ressalvando-se a total e saudável legitimidade do segundo
grupo em defender suas crenças e sustentar convicções, distante de quaisquer
fascismos da opinião alheia ou dos “justiceiros sociais”, faz-se imprescindível
sopesar as questões, principalmente, em se tratando de debate de políticas
públicas (de saúde, diga-se).
A esclarecer, portanto,
tem-se na conjuntura evidenciada o ponto-chave do conhecimento já incontrovertido
da fatalidade da patologia, que invariavelmente resultará em uma morte, no mais
tardar, em curto prazo − há que se acrescentar, sobretudo, o fato da doença
poder ser detectada ainda no ventre materno. Assim, partindo-se destas
premissas − muitas vezes deixadas em segundo plano −, mesmo que houvesse vida (afinal,
um conceito de dilatadas definições), essa, “em razão de sua existência
diminutiva e precária, deveria ceder frente aos direitos maternos violados”,
uma vez analisadas as referidas fatalidades da doença e sua possibilidade de
previsão, como se assiste no voto do ministro relator Marco Aurélio. Nesse
sentido de avaliação também argumenta Gilmar Mendes: apesar de o jurista
divergir e considerar, sim, a interrupção de fetos anencéfalos um aborto,
defende uma interpretação ampliada do Art. 128, I, CP, propondo, dessa forma,
incluir nos excludentes de ilicitude do aborto o caso de anencefalia – tendo em
vista a impossibilidade de o legislador antever a problemática a sua época.
Faz-se interessante
salientar que o julgado em si contou com a particularidade de que tanto os
votos do Advogado geral da União quanto da Procuradora geral da República terem
decidido pela procedência da ADPF − consenso que raramente ocorre. Fato esse
que, somado a ampla vantagem da votação, oito votos a dois, revela uma espécie
de fuga da “rigidez de um rigorismo racional” do STF e leva-nos a um produtivo diálogo
com Bourdieu, em seu texto “A força do direito: elementos para uma sociologia
do campo jurídico”. Ao longo da obra, o autor tece a problemática tanto de uma
perspectiva totalmente instrumentalista, quanto à de uma extremamente formalista
do Direito, criticando de kelseneanos a marxistas, e evidenciando, por outro
lado, a estima de se ter uma orientação mais atenta “às aplicações que dele (do
direito) podem ser feitas em situações concretas” – estas estariam mais
nas competências dos juízes ordinários e outros práticos, mais próximos das demandas
sociais; em contraponto àqueles juristas e outros teóricos que “tendem a puxar
o direito no sentido da teoria pura”.
É justamente da
meditação nesses pontos que se pode observar e fazer-se ponderações em relação
à evidenciada decisão do STF. Ao contrário de um exercício típico e formal da
atividade jurídica – como na teoria dos sistemas de Luhmann, na qual se tem um
Direito autopoiético, com uma lógica própria, funcionalista e mantenedora do
equilíbrio social −, tivera-se um tribunal voltado para o dito “princípio da
transformação”, que não se volta tão-só para hermenêutica do campo jurídico ou
“espaço dos possíveis”, e, sim, leva em conta a função essencial do magistrado,
que “por meio da sua prática [...] tendem a assegurar a função de adaptação ao
real num sistema”, isto é, tem-se reconhecida que a função implica gestão de
conflitos, a qual não seria possível somente com a figura dos “professores”
(leia-se teóricos, em geral, no sentido daqueles mais afastados das demandas
cotidianas sociais), propensos a um fechamento no tal rigorismo racional – o que
certamente excluiria a introdução de mudanças e inovações indispensáveis à sobrevivência
do sistema, como no caso de aborto de anencéfalo em que só analisar-se-ia que o
fato enquadra-se no tipo penal, independente de sua inviabilidade e dos traumas
que viria a causar à gestante.
Dessa forma, a ADPF 54 −
e sua ampla votação pela procedência − representara um fator de análise e
estudo para Direito, enquanto ciência jurídica, tanto em suas dimensões jurídica-penal
e constitucional, em si, quanto no que se refere a uma análise epistemológica do
funcionamento dele próprio, no que diz respeito a seu campo, lógica,
linguagem e hermenêutica – o seu “dever ser”, em síntese. A decisão tivera
relevado a necessidade da função dos ditos “operadores”, na qualidade de promotores de uma leitura da realidade, em dado espaço sociocultural, em busca da aproximação com as demandas sociais, orientando-se pelas situações concretas e
fazendo prevalecer (como feito) os direitos à dignidade humana, saúde, liberdade,
integridade física e moral da gestante de fetos anencéfalos − os quais, como
conclui Ellen C. Veras de Araujo, em artigo sobre o assunto, acabam “sendo uma
sentença de morte iminente, carecendo apenas de data certa”.
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