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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O campo Jurídico de Bourdieu e a realização da luta simbólica no espaço dos possíveis

 Conforme estudamos e aprendemos, o Direito como instância social pode ser tensionado por diversas classes, grupos e segmentos do ordenamento social, sendo influenciado pela sociedade onde se encontra e influenciando a mesma, nessa linha Bourdieu teoriza, concebendo o direito como espaço onde o poder simbólico se manifesta para realizar mudanças no plano material social.  Indo contra o formalismo de Kelsen e o instrumentalismo de caráter marxista onde de formas absolutas tratavam do direito, Bourdieu  admite uma autônima relativa do direito, considerando ambas as características, onde o campo jurídico é um espaço com certa distância da sociedade, por meio de seu formalismo, mas que pelo mesmo expresso em seu processo funcional e na sua linguagem única conferem a universalização e a neutralização necessárias para a resolução de conflitos na realidade fática.
 Dentro de todo este contexto, os agentes do direito, operadores e doutrinadores, trabalham em uma dinâmica hierarquizada, em busca da resolução de suas perspectivas, realizando o maquinário jurídico de forma complementar, mesmo em aspectos antagônicos e em perspectivas de ação diversas, seja teorizando na formalidade e adaptando a aplicabilidade na prática. Neste contexto, curioso é o detalhamento que a situação discutida pelo STF referente à  arguição de descumprimento fundamental nº 54 produz. Trata-se sobre a possibilidade de o aborto de fetos na condição de anencefalia ser realizado sem se enquadrar em aspecto criminal, se destacando do significado do aborto de feto sadio em condição não especificada.
 Fruto da resolução de um habeas corpus nº 82025-6, onde se reverteu a prisão de profissionais médicos que realizaram um aborto de um feto anencéfalo, questionou-se a interpretação de disposições do código penal onde se criminalizava ação, tal interpretação na visão dos requerentes da ADPF era inconstitucional, visto que feria princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e o da legalidade, liberdade e autonomia da vontade. O posicionamento a favor de tal arguição foi a maioria, porém, não absoluto, ocorrendo divergências quanto as noções de função do STF para alguns ministros. Mesmo em uma instância equivalente, dividindo o mesmo espaço e a mesma função, é fato que cada ministro leva consigo uma bagagem de princípios particulares que incidem por meio de seu dialeto jurídico em seus votos, esse habitus por si só não pode alterar de forma drástica a interpretação jurídica, visto que todo e qualquer jurista pode apenas atuar no espaço dos possíveis, onde doutrinas, princípios, tradições e outras referências basilares limitam a interpretação legitima do agente no campo jurídico. Isso reduz a arbitrariedade mas não a extingue do espectro jurídico, e a hierarquização se torna outro fator para impedir tal de se espalhar, uma vez que cada tipo de agente do campo jurídico pode mobilizar de formas diferentes as engrenagens do maquinário chamado direito, alguns mais do que outros, especialmente um ministro do supremo.
 Nessa luta simbólica pela resolução desta ADPF, ministros como o relator do processo, Marco Aurélio, foram a favor, e este especificamente toca na vertente de uma resistência a tal arguição proveniente de princípios religiosos. O ministro toca na influência histórica da Igreja sobre o Estado e como tal se realiza ainda hoje mesmo depois da separação das instâncias. Contudo, ressalta também a capacidade do direito de se adaptar as novas realidades e de se alterar contra a influência de outras instâncias sociais, renovando a interpretação do espectro constitucional, realizando a historicização da norma por esta ADPF, conferindo por fim o direito da mãe de realizar o aborto por meio de autorização médica e não mais judicial. Entre ministros opostos, temos o exemplo de Ricardo Lewandowski, que se pôs contra, com a premissa de uma necesária ação negativa do supremo, em oposição a um aparente ativismo, visto que caberia a legislação alterar tal disposição sobre o aborto caso quisesse relacionar a anencefalia. Isso leva a questão do capital simbólico que o STF e o direito tem para pesar sobre as definições de vida, até porque quando tratamos de poder simbólico, tal se manifesta em diversos contextos onde dois entes podem ser, um o que possui mais capital simbólico e o outro menos para referida situação e o inverso em situação adversa.
 O direito, assim como ministros do STF se valem de capitais de outras esferas, se utilizando da doutrina médica para legitimar, por exemplo, o aborto no caso de anencefalia, usando estatísticas, conferindo mais capital a seu poder simbólico. Não só isso, temos diversas concepções de vida, e pelo espectro jurídico, temos a ideia de que se um ser, mesmo tutelando direitos, não tem as condições para se desenvolver como ente pensante, não pode realizar uma das concepções da sentido da vida mais reinante na mente do homem, sua busca por felicidade, realização, conformação de si para si. Uma vida sem esse conteúdo não difere na prática da morte, sendo que viver é diferente de existir. Tal posicionamento pode ser refutado, é uma vertente como varias outras, mas travestido de princípios, de acordo com a linguagem normativa, imbuída de simbologia, pode atuar de forma excelente no espaço dos possíveis, e assim se fez.



Leonardo Garcia - Direito - Noturno 

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