Conforme estudamos e aprendemos, o Direito
como instância social pode ser tensionado por diversas classes, grupos e
segmentos do ordenamento social, sendo influenciado pela sociedade onde se encontra
e influenciando a mesma, nessa linha Bourdieu teoriza, concebendo o direito
como espaço onde o poder simbólico se manifesta para realizar mudanças no plano
material social. Indo contra o
formalismo de Kelsen e o instrumentalismo de caráter marxista onde de formas
absolutas tratavam do direito, Bourdieu admite uma autônima relativa do direito,
considerando ambas as características, onde o campo jurídico é um espaço com
certa distância da sociedade, por meio de seu formalismo, mas que pelo mesmo
expresso em seu processo funcional e na sua linguagem única conferem a
universalização e a neutralização necessárias para a resolução de conflitos na
realidade fática.
Dentro de todo este contexto, os agentes do
direito, operadores e doutrinadores, trabalham em uma dinâmica hierarquizada,
em busca da resolução de suas perspectivas, realizando o maquinário jurídico de
forma complementar, mesmo em aspectos antagônicos e em perspectivas de ação
diversas, seja teorizando na formalidade e adaptando a aplicabilidade na
prática. Neste contexto, curioso é o detalhamento que a situação discutida pelo
STF referente à arguição de
descumprimento fundamental nº 54 produz. Trata-se sobre a possibilidade de o
aborto de fetos na condição de anencefalia ser realizado sem se enquadrar em
aspecto criminal, se destacando do significado do aborto de feto sadio em
condição não especificada.
Fruto da resolução de um habeas corpus nº 82025-6, onde se reverteu a prisão de
profissionais médicos que realizaram um aborto de um feto anencéfalo, questionou-se
a interpretação de disposições do código penal onde se criminalizava ação, tal
interpretação na visão dos requerentes da ADPF era inconstitucional, visto que
feria princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e o da
legalidade, liberdade e autonomia da vontade. O posicionamento a favor de tal
arguição foi a maioria, porém, não absoluto, ocorrendo divergências quanto as
noções de função do STF para alguns ministros. Mesmo em uma instância
equivalente, dividindo o mesmo espaço e a mesma função, é fato que cada ministro
leva consigo uma bagagem de princípios particulares que incidem por meio de seu
dialeto jurídico em seus votos, esse habitus
por si só não pode alterar de forma drástica a interpretação jurídica, visto
que todo e qualquer jurista pode apenas atuar no espaço dos possíveis, onde
doutrinas, princípios, tradições e outras referências basilares limitam a
interpretação legitima do agente no campo jurídico. Isso reduz a arbitrariedade
mas não a extingue do espectro jurídico, e a hierarquização se torna outro
fator para impedir tal de se espalhar, uma vez que cada tipo de agente do campo
jurídico pode mobilizar de formas diferentes as engrenagens do maquinário
chamado direito, alguns mais do que outros, especialmente um ministro do
supremo.
Nessa luta simbólica pela resolução desta
ADPF, ministros como o relator do processo, Marco Aurélio, foram a favor, e
este especificamente toca na vertente de uma resistência a tal arguição
proveniente de princípios religiosos. O ministro toca na influência histórica
da Igreja sobre o Estado e como tal se realiza ainda hoje mesmo depois da
separação das instâncias. Contudo, ressalta também a capacidade do direito de
se adaptar as novas realidades e de se alterar contra a influência de outras
instâncias sociais, renovando a interpretação do espectro constitucional,
realizando a historicização da norma por esta ADPF, conferindo por fim o
direito da mãe de realizar o aborto por meio de autorização médica e não mais
judicial. Entre ministros opostos, temos o exemplo de Ricardo Lewandowski, que
se pôs contra, com a premissa de uma necesária ação negativa do supremo, em oposição
a um aparente ativismo, visto que caberia a legislação alterar tal disposição
sobre o aborto caso quisesse relacionar a anencefalia. Isso leva a questão do
capital simbólico que o STF e o direito tem para pesar sobre as definições de
vida, até porque quando tratamos de poder simbólico, tal se manifesta em
diversos contextos onde dois entes podem ser, um o que possui mais capital simbólico
e o outro menos para referida situação e o inverso em situação adversa.
O direito, assim como ministros do STF se
valem de capitais de outras esferas, se utilizando da doutrina médica para
legitimar, por exemplo, o aborto no caso de anencefalia, usando estatísticas,
conferindo mais capital a seu poder simbólico. Não só isso, temos diversas
concepções de vida, e pelo espectro jurídico, temos a ideia de que se um ser,
mesmo tutelando direitos, não tem as condições para se desenvolver como ente
pensante, não pode realizar uma das concepções da sentido da vida mais reinante
na mente do homem, sua busca por felicidade, realização, conformação de si para
si. Uma vida sem esse conteúdo não difere na prática da morte, sendo que viver
é diferente de existir. Tal posicionamento pode ser refutado, é uma vertente
como varias outras, mas travestido de princípios, de acordo com a linguagem
normativa, imbuída de simbologia, pode atuar de forma excelente no espaço dos possíveis,
e assim se fez.
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