Como exposto por Bordieu, o fato de sobretudo a classe
dominante ter formações familiares e escolares semelhantes possibilita uma
aproximação dos interesses e uma maior vantagem dessa classe em relação as
lutas da sociedade. Todavia, isso não reduz o fato do direito gozar de uma relativa
autonomia e de ter o poder também, de atender as demandas das demais camadas da
sociedade, assim, a questão da descriminalização do aborto de anencéfalos se
encaixa em uma das vezes em que o direito consegue usufruir desse poder.
A aparência de neutralidade e universalidade do direito, faz
com que, muitas vezes, normas que não não são neutras e muito menos universais
sejam assim consideradas e, a questão do aborto, devido a delicadeza e as
divergências no campo da própria ciência é, de fato, uma das mais afetadas por
isto. Tem-se como um caso exemplificador disso o fato da PEC 181, ter sido
aprovada, no entanto, o que se esquece muitas vezes é que, sendo uma questão
tão complexa e ligadas a fatores emocionais e principalmente sociais, deveria
então ser decidida levando-se em conta quem são as pessoas mais afetadas, ou
seja, mulheres e em sua maioria, negras, diferentemente do que aconteceu, tendo
em vista que a decisão foi tomada por homens e da classe dominante. Analisando
por este ponto, é ainda mais notório o avanço social que foi a questão da
descriminalização do aborto de anencéfalos, pois, em uma sociedade marcada pelo
forte machismo e conservadorismo, como a brasileira, uma decisão feita
respeitando critérios medicinais, ou seja, respeitando que o desenvolvimento de
um feto anencéfalo só traria sofrimentos e, respeitando a decisão da mulher, é
uma grande vitória e um veredicto, definido como "um produto da luta
simbólica no campo jurídico, entre profissionais dotados de competências
técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo
desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das
regras possíveis".
Portanto, nessa decisão de descriminalizar um aborto de
anencéfalos, tem-se um veredicto à medida que diz respeito muito mais as
atitudes éticas dos agentes do que das normas puras do direito, além de ser uma
decisão envolvendo lutas históricas específicas e o uso da relativa autonomia
do direito, mostrando que, apesar de ser mais facilmente controlado pelas
classes dominantes, o direito é sim uma via de mão dupla, servindo também a
população não dominante.
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