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segunda-feira, 10 de abril de 2023

UM MECANISMO PRECISAMENTE AJUSTADO

 

A casa de concerto de Musikverein, inaugurada em 6 de janeiro de 1870, está  atualmente entre as três maiores do mundo, servindo como lar de uma das mais  longevas e importantes orquestras contemporâneas: a Orquestra Filarmônica de  Viena. As listas de espera para se assistir um concerto nessa casa podem variar  de seis a treze anos. 

Prédio e músicos formam um todo harmônico indissociável. A acústica, pensada  na composição da arquitetura do prédio, conjugada a sincronia que se  desenvolve em cada corda de cada um dos instrumentos, todos perfeitamente  afinados, e até mesmo o ritmo da respiração de cada músico metodicamente  cadenciado, tudo colabora para compor um quadro que revela a riqueza da  proposta artística da casa. Proporção e equilíbrio. Elementos caros a teoria e a  prática musical, mas também a própria modernidade. 

O homem moderno aprendeu a olhar para o mundo não como uma caótica  disposição de fenômenos incompreensíveis e imprevisíveis, e sim como um  conjunto de relações harmônica e logicamente correlacionadas entre si. Um  mecanismo precisamente e matematicamente calibrado, do qual seria possível  abstrair certas leis intrínsecas a ele. Daí a afirmação de Galileu: “Matemática é  a linguagem em que Deus escreveu o universo”. 

O entendimento dessas relações por meio do método científico, viabilizou um  alargamento sem precedentes das fronteiras do conhecimento humano e de sua  aplicação. Assim, as ciências matemáticas se consolidaram como o primeiro  campo científico moderno fornecendo um modelo para os demais campos de  estudo que se desenvolveriam posteriormente, entre os quais a própria  Sociologia. 

A influência dessa mentalidade moderna com relação a estruturação matemática  do universo, é notável na incipiente elaboração dos estudos científicos acerca  da sociedade e suas instituições. Auguste Comte, um dos primeiros formadores  do pensamento sociológico, propôs uma verdadeira “Física Social” capaz de

identificar as leis imanentes a ordem, a cadência, a harmonia e ao progresso  sociais, as quais nomeou de “Leis Positivas”. 

Para ele, a função de um cientista social seria reconhecer essas leis numa  análise histórica e se possível afinar a sociedade a elas. Pois, da mesma maneira  que não se pode trocar os elementos de uma equação matemática sem alterar  o seu resultado, Comte defendia não ser possível ao corpo social romper com  certas leis, instituições e valores positivos sem comprometer o equilíbrio e o  desenvolvimento da sociedade como um todo. 

Dessa maneira, com a rigidez de um cálculo, qualquer elemento descoordenado  ou dessincronizado, cada nota destoante ou imperfeitamente cadenciada,  representariam para o positivismo um mal a ser expressamente rechaçado e  combatido sob ameaça de anarquia e degeneração da harmoniosa melodia  social – do próprio equilíbrio que permite o movimento da sociedade. 

Entretanto, existe um equívoco fatal nessa visão positivista em atribuir ao  universo social a justeza e precisão com a qual operam as ciências matemáticas,  ou melhor, em tratar a sociedade com um mecanismo cujo bom funcionamento  está subordinado ao acatamento exato e irrestrito às Leis Positivas, traduzidas  em valores e instituições das quais depende o equilíbrio social. Desse modo,  Émile Durkheim foi o primeiro a identificar esse equívoco nas teorias sociais de  Comte. 

Em primeiro lugar, ele percebeu que a irredutibilidade da “Física Social” não  proporcionava um modelo capaz de explicar e gerar uma contínua ordem e  progresso na sociedade. Isto porque, a realidade social é muito mais fluida do  que um mecanismo matemático e o corpo coletivo, junto as suas instituições e  valores, precisa corresponder a essa flutuação de uma maneira satisfatória, o  que não é possível mediante a essa inflexibilidade do método positivista. 

Nessa perspectiva, uma Sociedade Positivista anelando preservar a todo custo  suas estruturas consideradas imprescindíveis para o equilíbrio social,  desconsiderando e combatendo implacavelmente qualquer elemento divergente,  está fadada a dissenção e anarquia pela sua incapacidade de sequer admitir  suas divergências internas, quanto mais administrá-las.

Durkheim compreendeu que a coesão de uma sociedade ultrapassa a simples  repressão de forças sociais centrífugas, e engloba a própria aptidão das  instituições vigentes de assimila-las e as incorporar às suas estruturas caso seus  mecanismos de coerção falhem. Em outras palavras, não se deve pressupor  que a sociedade alcançará em algum momento um estado de equilíbrio absoluto  e duradouro no qual todas as formas de divergência serão superadas, como  prescreve o ideário positivista; entretanto, presume-se que a sociedade sempre  oferecerá uma resposta a fim de promover e estender ao máximo possível sua  condição de estabilidade e harmonia. 

Essa resposta se dá em dois momentos: a priori, com a coerção de qualquer  parte discordante do arranjo social em vigor (status quo) através de mecanismos  coativos próprios ao corpo coletivo; a posteriori, com a agregação total ou parcial  dessas partes na totalidade coletiva, não mais como um elemento estranho a  essa totalidade e sim como componente da mesma. 

Como já foi mencionado, a passagem do primeiro para o segundo momento de  resposta ocorre mediante a insuficiência dos recursos coercitivos em neutralizar  as forças sociais que diferem da condição de equilíbrio imperante na sociedade  com seus valores e instituições, resultando em rupturas e descontinuidades que  comprometem a ordem e o bom funcionamento do corpo coletivo (anomia). 

Portanto, segundo Émile Durkheim, a engenhosidade da dinâmica social,  intrínseca a ordem e ao movimento coletivos, não está em Leis Positivas que  ajustam a grande máquina social e seus componentes, e sim na habilidade do  corpo social de moldar e ser moldado pelas circunstâncias, de fazer convergir  em si forças desagregadoras gerando novos arranjos compatíveis com as novas  demandas, as quais os antigos arranjos não podiam assimilar. Enfim, trata-se de  se compor a partir das incorrigíveis notas destoantes uma nova melodia. 

A casa de Musikverein foi concebida no seio de um dos mais reacionários  impérios da Europa Continental: o Império Austríaco e Habsburgo, em plena  Belle Époque. Nesse sentido, a composição da ilustre casa de concertos não  deixou de refletir o espírito conservador de sua época, e no decorrer do tempo  buscou preservar ao máximo suas bases conservadoras e elitistas.

Para tanto, valeu-se de procedimentos extremamente austeros que  determinavam, por exemplo, a não admissão de mulheres como membros  oficiais de sua orquestra. E durante muito tempo essas medidas não foram  sequer questionadas e quando foram, sem muita contundência. 

Todavia, não menos do que cento e vinte sete anos depois da inauguração da  casa de concerto em Viena e contando cento e cinquenta e cinco anos desde a  fundação do grupo, somente em 1997, a harpista Anna Lelkes foi a primeira  mulher a ser admitida oficialmente como membra da Orquestra Filarmônica de  Viena, isso depois de passar vinte anos apresentando-se nela. 

Essa mudança nesse microcosmo social que representa Musikverein, reproduz  perfeitamente como as instituições e os próprios componentes da vida social se  comportam buscando, sim, preservar suas estruturas e arranjos originários, mas  também como o sucesso e a sua continuidade dependem da sua capacidade de  flutuação em meio a fluidez do universo social, isto é, de se ajustar  adequadamente as demandas do cenário histórico e coletivo vigente. 

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