A casa de concerto de Musikverein, inaugurada em 6 de janeiro de 1870, está atualmente entre as três maiores do mundo, servindo como lar de uma das mais longevas e importantes orquestras contemporâneas: a Orquestra Filarmônica de Viena. As listas de espera para se assistir um concerto nessa casa podem variar de seis a treze anos.
Prédio e músicos formam um todo harmônico indissociável. A acústica, pensada na composição da arquitetura do prédio, conjugada a sincronia que se desenvolve em cada corda de cada um dos instrumentos, todos perfeitamente afinados, e até mesmo o ritmo da respiração de cada músico metodicamente cadenciado, tudo colabora para compor um quadro que revela a riqueza da proposta artística da casa. Proporção e equilíbrio. Elementos caros a teoria e a prática musical, mas também a própria modernidade.
O homem moderno aprendeu a olhar para o mundo não como uma caótica disposição de fenômenos incompreensíveis e imprevisíveis, e sim como um conjunto de relações harmônica e logicamente correlacionadas entre si. Um mecanismo precisamente e matematicamente calibrado, do qual seria possível abstrair certas leis intrínsecas a ele. Daí a afirmação de Galileu: “Matemática é a linguagem em que Deus escreveu o universo”.
O entendimento dessas relações por meio do método científico, viabilizou um alargamento sem precedentes das fronteiras do conhecimento humano e de sua aplicação. Assim, as ciências matemáticas se consolidaram como o primeiro campo científico moderno fornecendo um modelo para os demais campos de estudo que se desenvolveriam posteriormente, entre os quais a própria Sociologia.
A influência dessa mentalidade moderna com relação a estruturação matemática do universo, é notável na incipiente elaboração dos estudos científicos acerca da sociedade e suas instituições. Auguste Comte, um dos primeiros formadores do pensamento sociológico, propôs uma verdadeira “Física Social” capaz de
identificar as leis imanentes a ordem, a cadência, a harmonia e ao progresso sociais, as quais nomeou de “Leis Positivas”.
Para ele, a função de um cientista social seria reconhecer essas leis numa análise histórica e se possível afinar a sociedade a elas. Pois, da mesma maneira que não se pode trocar os elementos de uma equação matemática sem alterar o seu resultado, Comte defendia não ser possível ao corpo social romper com certas leis, instituições e valores positivos sem comprometer o equilíbrio e o desenvolvimento da sociedade como um todo.
Dessa maneira, com a rigidez de um cálculo, qualquer elemento descoordenado ou dessincronizado, cada nota destoante ou imperfeitamente cadenciada, representariam para o positivismo um mal a ser expressamente rechaçado e combatido sob ameaça de anarquia e degeneração da harmoniosa melodia social – do próprio equilíbrio que permite o movimento da sociedade.
Entretanto, existe um equívoco fatal nessa visão positivista em atribuir ao universo social a justeza e precisão com a qual operam as ciências matemáticas, ou melhor, em tratar a sociedade com um mecanismo cujo bom funcionamento está subordinado ao acatamento exato e irrestrito às Leis Positivas, traduzidas em valores e instituições das quais depende o equilíbrio social. Desse modo, Émile Durkheim foi o primeiro a identificar esse equívoco nas teorias sociais de Comte.
Em primeiro lugar, ele percebeu que a irredutibilidade da “Física Social” não proporcionava um modelo capaz de explicar e gerar uma contínua ordem e progresso na sociedade. Isto porque, a realidade social é muito mais fluida do que um mecanismo matemático e o corpo coletivo, junto as suas instituições e valores, precisa corresponder a essa flutuação de uma maneira satisfatória, o que não é possível mediante a essa inflexibilidade do método positivista.
Nessa perspectiva, uma Sociedade Positivista anelando preservar a todo custo suas estruturas consideradas imprescindíveis para o equilíbrio social, desconsiderando e combatendo implacavelmente qualquer elemento divergente, está fadada a dissenção e anarquia pela sua incapacidade de sequer admitir suas divergências internas, quanto mais administrá-las.
Durkheim compreendeu que a coesão de uma sociedade ultrapassa a simples repressão de forças sociais centrífugas, e engloba a própria aptidão das instituições vigentes de assimila-las e as incorporar às suas estruturas caso seus mecanismos de coerção falhem. Em outras palavras, não se deve pressupor que a sociedade alcançará em algum momento um estado de equilíbrio absoluto e duradouro no qual todas as formas de divergência serão superadas, como prescreve o ideário positivista; entretanto, presume-se que a sociedade sempre oferecerá uma resposta a fim de promover e estender ao máximo possível sua condição de estabilidade e harmonia.
Essa resposta se dá em dois momentos: a priori, com a coerção de qualquer parte discordante do arranjo social em vigor (status quo) através de mecanismos coativos próprios ao corpo coletivo; a posteriori, com a agregação total ou parcial dessas partes na totalidade coletiva, não mais como um elemento estranho a essa totalidade e sim como componente da mesma.
Como já foi mencionado, a passagem do primeiro para o segundo momento de resposta ocorre mediante a insuficiência dos recursos coercitivos em neutralizar as forças sociais que diferem da condição de equilíbrio imperante na sociedade com seus valores e instituições, resultando em rupturas e descontinuidades que comprometem a ordem e o bom funcionamento do corpo coletivo (anomia).
Portanto, segundo Émile Durkheim, a engenhosidade da dinâmica social, intrínseca a ordem e ao movimento coletivos, não está em Leis Positivas que ajustam a grande máquina social e seus componentes, e sim na habilidade do corpo social de moldar e ser moldado pelas circunstâncias, de fazer convergir em si forças desagregadoras gerando novos arranjos compatíveis com as novas demandas, as quais os antigos arranjos não podiam assimilar. Enfim, trata-se de se compor a partir das incorrigíveis notas destoantes uma nova melodia.
A casa de Musikverein foi concebida no seio de um dos mais reacionários impérios da Europa Continental: o Império Austríaco e Habsburgo, em plena Belle Époque. Nesse sentido, a composição da ilustre casa de concertos não deixou de refletir o espírito conservador de sua época, e no decorrer do tempo buscou preservar ao máximo suas bases conservadoras e elitistas.
Para tanto, valeu-se de procedimentos extremamente austeros que determinavam, por exemplo, a não admissão de mulheres como membros oficiais de sua orquestra. E durante muito tempo essas medidas não foram sequer questionadas e quando foram, sem muita contundência.
Todavia, não menos do que cento e vinte sete anos depois da inauguração da casa de concerto em Viena e contando cento e cinquenta e cinco anos desde a fundação do grupo, somente em 1997, a harpista Anna Lelkes foi a primeira mulher a ser admitida oficialmente como membra da Orquestra Filarmônica de Viena, isso depois de passar vinte anos apresentando-se nela.
Essa mudança nesse microcosmo social que representa Musikverein, reproduz perfeitamente como as instituições e os próprios componentes da vida social se comportam buscando, sim, preservar suas estruturas e arranjos originários, mas também como o sucesso e a sua continuidade dependem da sua capacidade de flutuação em meio a fluidez do universo social, isto é, de se ajustar adequadamente as demandas do cenário histórico e coletivo vigente.
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