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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A simbiose entre Durkheim e a atualidade

    A obra brasileira “O Cortiço”, escrita por Aluísio Azevedo, é um romance naturalista do fim do século XIX. Seu enredo é composto pelo cotidiano de um cortiço do Rio de Janeiro, capaz de retratar um microcosmo da sociedade brasileira. Com seus vários personagens, há vários fenômenos sociais demonstrados. Um desses fenômenos seria a quebra de paradigmas, ou seja, a ruptura com padrões comportamentais pela personagem Pombinha. Sua mãe, Dona Isabel, a havia criado segundo as regras impostas pela sociedade machista às meninas, logo, tinha bons modos, era estudiosa, educada e, claro, deveria estar à busca de um homem para casar. Porém, ao Pombinha se deparar com os homens ao seu redor, se decepciona e escolhe a homossexualidade e a prostituição, rompendo com as expectativas de sua mãe e de toda a sociedade, que deixa de olhá-la com admiração, passando a um olhar de repúdio. Analogamente, esse ocorrido retrata o objeto de estudo da teoria durkheimiana- desenvolvida também durante o século XIX-, denominado fato social.                                                                                

    O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) é considerado o fundador da sociologia, pois seu método científico foi capaz de diferenciar a sociologia das demais ciências humanas, a partir do estudo dos “fatos sociais”. Segundo o sociólogo, "É fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter.". Sendo assim, extraem-se três características principais do objeto de estudo em questão: coercitividade, exterioridade e generalidade. A coercitividade é baseada na pressão externa/social atuada sobre o indivíduo, para que os indivíduos sigam as normas impostas pela sociedade. A exterioridade se encontra no argumento de que o fato social independe das vontades individuais, sendo externo ao ser humano. Por fim, a generalidade é explicada pelos fatos sociais se repetirem na esmagadora parcela dos indivíduos da sociedade. Os fatos sociais devem ser tratados como “coisas”, ou seja, exprimem naturalidade e objetividade, além de determinarem um conjunto de regras, normas e padrões de comportamento para a sociedade. Com o respeito a essas regras, Durkheim diz estabelecer-se a coesão social, ou seja, uma harmonia na sociedade. Nesse panorama, surge a coerção: quando o homem resiste a seguir o fato social, ele ameaça romper o equilíbrio estabelecido, cabendo à sociedade  reprimí-lo, a fim de evitar a anomia (deterioração das regras que mantém a coesão).                                                                                                                                                      

    Tal repressão, mais evidente quando há resistência ao seguir das regras sociais, é demonstrada, portanto, na história de Pombinha, de “O Cortiço”. Quando deixou de obedecer as normas da sociedade, ou seja, ser uma mulher heterossexual, submissa e “recatada”, escolhendo viver uma vida pautada na homossexualidade e prostituição, se tornou automaticamente alvo da coerção social, a partir do desprezo dos habitantes do cortiço e, inclusive, de sua própria mãe, que morre de desgosto.  Esse cenário, infelizmente, ainda permeia, de modo intenso, a contemporaneidade, em função do persistente panorama racista, machista e cisheteronormativo do ocidente. Durkheim diz que os padrões de comportamento estabelecidos em torno desse panorama são aprendidos no processo de socialização, a partir de instituições que os transmitem, como as escolas, famílias e igrejas, a fim de adequar o indivíduo à sociedade e prendê-lo ao estereótipo que lhe é imposto. Atualmente, o fato social sobre o machismo e suas decorrências ainda se perpetuam, como o estereótipo relacionado ao gênero sobre atributos que homens e mulheres devem possuir ou sobre funções sociais que devem cumprir, sem igualdade de direito entre os gêneros.                                                                                        

    Em um âmbito mais interno, foi demonstrado no Brasil, em 2019, o escancarar de como esses padrões ainda estão muito presentes. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que o país estava em uma “nova era”, em que os meninos vestiam azul, e as meninas, rosa. Essa fala gerou muitos aplausos e apoio da população, demonstrando ainda um apego a essa regra social relacionada ao gênero e, logo, ao machismo. Dessa forma, vários indivíduos (“Pombinhas contemporâneas”?) que não se identificam com o modelo imposto, muitas vezes decidem o seguir apesar das discrepâncias com suas aptidões pessoais e decisões de vida, pois, por estarem sujeitos a esse fato social, sofrerão coerção caso não o obedeçam.               

    Apesar dessas muitas pessoas optarem por não se opor ao fato social, é indubitável o argumento de que a reação às ações machistas está se fortalecendo progressivamente, a partir da ascensão de movimentos feministas. Esses, surgidos nos anos 1960 nos Estados Unidos, reivindicam a igualdade de direitos civis e políticos entre homens e mulheres, além da liberdade de agir fora dos padrões impostos. Entretanto, visto que o feminicídio (assassinato de mulheres e meninas por questões de gênero) ainda é um dos crimes mais cometidos no mundo, o machismo permanece na mentalidade da sociedade, sendo um fato social que continua gerando repressões extremamente violentas aos movimentos reacionários. Entre essas repressões, encontram-se agressões psicológicas, físicas e consequentes mortes sofridas por várias mulheres. A fala da ministra revela, portanto, que o contexto brasileiro, infelizmente, ainda corrobora esse fato social, tornando o Brasil como o 5° país com mais casos de feminicídios no mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUD), de 2019.                                                                                                                                                                              

      Logo, percebe-se que o microcosmo da sociedade brasileira do século XIX, representado em “O Cortiço” ainda se mantém intacto, mesmo 200 anos depois. O machismo ainda se mantém intacto como fato social. Com suas nefastas consequências, é necessário que a luta feminista não deixe de ocorrer, para que o machismo deixe de se apresentar como generalizado, coercitivo e externo na sociedade. Para que mulheres não se sintam culpadas ao sair das celas comportamentais em que foram aprisionadas. Para que não sofram a pressão coercitiva. Para que não recebam o mesmo tratamento de Pombinha. Segundo Paulo Freire, “O mundo não é, o mundo está sendo”, ou seja, o machismo, apesar de tão perene nos últimos séculos, não deve ser algo permanente no mundo, muito menos continuar contendo as características do objeto do estudo durkheimiano.

Ana Marcela Nahas Cardili- 1°ano Direito Matutino

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