O caso de injúria racial envolvendo um entregador de aplicativo, que acabou viralizando nas redes sociais no último dia 7, talvez seja um dos melhores exemplos de como a exacerbada individualização dentro da sociedade atual é capaz de “cegar” certos indivíduos, levando-os a desconsiderar aqueles que estão à sua volta. No caso mencionado, Matheus Pires, um motoboy que trabalha no iFood, acabou sendo ofendido por um morador de um condomínio localizado em Valinhos, que além de utilizar-se de ofensas como “lixo” e “semianalfabeto”, também fez referência pejorativa à cor de pele do entregador, conforme registrado em vídeo.
É através de eventos como o mencionado anteriormente que podemos assinalar certas características da sociedade orgânica, formulada pelo sociólogo francês Émile Durkheim. Este, ainda no século XIX, apontara que às sociedades modernas, onde se fazia presente uma complexa divisão do trabalho social, era inerente a interdependência entre os indivíduos. Nesse contexto, esses últimos deveriam se especializar cada vez mais em áreas diferentes do trabalho, realizando um movimento comum à toda a comunidade de, ao mesmo tempo em que se especializavam em suas tarefas, também se tornavam cada vez mais dependentes uns dos outros.
No entanto, foi justamente essa
individualização que Durkheim observou na sociedade capitalista de sua época,
cujo desenvolvimento foi levado à apoteose na atualidade, responsável pelos
ataques ao entregador em Valinhos. O morador do condomínio, que no vídeo
registrado por terceiros menospreza a atividade do motoboy, qualificando-a como
desprezível, acaba se esquecendo, quando envolto de seu mundo próprio (situação
ainda mais potencializada pelo isolamento social e pelo fato do indivíduo morar
num condomínio fechado), que o entregador nada mais realizava que uma atividade
essencial para a sua vida e à da coletividade, ainda mais necessitadas em
decorrência de uma pandemia.
Mistura-se ainda a esse caso
repugnante o poder da solidariedade negativa: imbuído por um sentimento de
poder, o morador do condomínio utiliza-se dos seus direitos reais,
caracterizados por Durkheim como àqueles que ligam os indivíduos às coisas,
como forma de ofender o entregador de aplicativo, que somente por sê-lo não se
mostrava digno de respeito. Dessa forma, o vídeo registra os momentos em que o condômino
aponta às casas em sua volta, dizendo ao entregador: “você tem inveja de tudo
isso”.
Por fim, a questão racial que envolve o caso não pode ser ignorada. As imagens registradas em que o morador aponta à sua pele, dizendo que Matheus a invejava, mostram-se repugnantes. O racismo, de caráter histórico no Brasil, nada mais é que o reflexo na atualidade do que ocorrera no passado, o qual foi marcado por mais de três séculos de escravidão. Consequentemente, embora a Constituição de 1988 tenha formalizado a igualdade entre os indivíduos, podemos observar na atitude discriminatória do morador a coerção social outrora realizada aos negros em tempos de Colônia e de Império. Os fatos sociais de tempos de escravidão, portanto, ainda não se desfizeram da consciência coletiva moderna.
Notícia do caso em Valinhos, onde consta o vídeo mencionado acima: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/07/motoboy-e-alvo-de-ofensas-racistas-voce-nunca-vai-ter-nada-diz-agressor.htm
Gustavo de Oliveira Battistini Pestana - 1o ano de Direito - Matutino
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