A
ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) promovida a
requerimento da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde do Brasil, com
o objetivo de obter do Supremo Tribunal Federal a descriminalização do aborto
de anencéfalos, ainda que se constitua num procedimento não extraordinário e
relativamente banal, pode muito bem servir de base concreta para a demonstração
da teoria do poder simbólico de Pierre Bourdieu. De fato, a totalidade de
processos envolvidos na resolução do caso em questão – desde a transposição
para o “juridiquês” do posicionamento da entidade requerente, até o parecer
final do magistrado qualificado – consistem em instituições essencial e
intrinsecamente simbólicas, as quais possuem justamente no referido simbolismo
o sentido de sua imperatividade e poder.
Em
primeiro lugar, a “tradução” do posicionamento concreto e não jurídico para os
moldes jurídicos, a fim de que o mesmo possa concorrer para o reconhecimento de
sua legitimidade perante o “ponto de vista transcendente [...] que é a visão do
Estado” (p. 236), significa uma adequação de uma perspectiva a princípio
“vulgar” e incapaz de se impor à sociedade de forma lícita e regular, a um
parecer selecionado, formalizado e adaptado à pretensão de racionalidade e universalidade
características da ótica jurídica vigente. Isto, com efeito, se dá, no caso da
ADPF citada, a partir do momento em que a mera oposição à imputabilidade penal
das mulheres que praticaram o aborto tendo em vista serem gestantes de fetos
anencéfalos é expressa nos termos de um requerimento à Corte Constitucional
para que esta busque uma maior conformidade com preceitos da lei maior ao
interpretar o Código Penal e determine a não criminalização do aborto em tais
circunstâncias.
O
processo de deliberação que antecede o veredicto final, cujos protagonistas por
excelência são os advogados das causas – a essa altura juridicamente válidas –
das partes, envolve a contraposição de raciocínios argumentativos submissos às
regras do jogo jurídico, às “leis escritas e não escritas do campo – […]
aquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei” (p. 229). É o que se
verifica na ADPF do aborto de anencéfalos levando-se em conta as alegações que,
de um lado, defendem a proteção da liberdade individual, da saúde mental da
gestante e a incompatibilidade do feto anencéfalo com a situação de vida em
termos fisiológicos, a fim de sustentarem sua posição favorável à interrupção
da gestação, e que, de outro, afirmam que o feto anencéfalo possui sim vida e
que, portanto, a interrupção da gestação caracterizaria o aborto penalmente
previsto.
Por fim, a decisão do
juiz consiste em uma proclamação extremamente significativa, visto simbolizar
não somente a prevalência de um posicionamento sobre o outro segundo critérios
imparciais e tidos, sem serem questionados, por racionais: representa ainda,
tal solução judicial, a consagração da ordem já estabelecida e um potencial
criador de situações concretas, por assim dizer, a serem contempladas pelo
campo jurídico, já deduzíveis e presentes de forma incipiente na realidade
sobre a qual trabalha o magistrado. Dessa forma, a conquista da
descriminalização do aborto de fetos anencéfalos somente se faz possível e
eficaz devido ao fato de que, antes mesmo de ser realizada, tal possibilidade
já possuía bases materiais em nossa sociedade que respaldassem sua eficácia.
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