Hans Kelsen em
sua obra “teoria pura do Direito” teoriza a questão da relação da moral e do
Direito nas sociedades, de maneira que conclui que o Direito não é,
necessariamente, aquilo que está conforme uma moral de grupos sociais ao qual
está vinculado. Ao passo que, no entanto, a moral se estabelece nos grupos
humanos com conformidade ao que se entende por ser justo e adequado ao grupo
que domina tanto economicamente como
politicamente uma determinada sociedade.
O sociólogo Pierre Bourdieu vai afirmar, por sua vez, uma posição
divergente em que coloca a moral numa espécie de dialética, que ele denomina de
ethos compartilhado do grupo dominante, grupo este que controla o poder
jurídico de seu ambiente. Importante notar que o ponto central da divergência nas
ideias de Kelsen e Bourdieu não é o simples fato de Kelsen argumentar que a
moral está simplesmente desvinculada do
direito, pois ele mesmo afirma que tanto este quanto aquela definem e são
definidas ambas por conduta interna e externa, havendo um tipo de relação, mas sim
porque Bourdieu, diferentemente de Kelsen, entende uma espécie de relação de
dialética imediata entre os dois, ao passo que Kelsen enxerga a priori uma
relação mediata, futura
O Caso do Arguimento de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que trata sobre a declaração de constitucionalidade
do pedido de descriminalização de aborto de fetos anencéfalos, é uma questão
não somente jurídica, mas por sua polêmica e forte interesse social, também abre
caminhos para o debate científico, como a opinião da medicina e se sujeita as
discussões informais. O Poder simbólico, conceito de Bourdieu, se relaciona
muito bem com a questão da decisão sobre o aborto de anencéfalos estar
submetida aos guardiões da constituição, o supremo tribunal Federal (STF). Este
tribunal como símbolo máximo da força e conhecimento jurídico, se notabiliza no
objeto das discussões e posicionamentos que dará no que Bourdieu chamou de
espaço dos possíveis, na medida em que a discussão que se abre para uma
determinada decisão jurídica também é uma questão moral, um locus em que a
expressão intelectual dos ministros se
fecha delimitando, na polêmica abordada, um direcionamento em que se é
permeável a um ponto limite, tentando não corromper esse espaço dos possíveis, na
medida em que esta existe exatamente para manter o caráter moral e conservador
daqueles que representam uma elite. Ao abordar a questão do aborto, o STF se
limita a dar seu parecer na fronteira do aborto de anencéfalos, e isso se constitui
num ethos dos grupos que dominam a nação. E outros tipos de aborto? É uma
questão que mexe não apenas com o poder judiciário, pois promove o
questionamento de vários outros setores da população bem como das ciências
humanas e biológicas.
O Supremo Tribunal Federal ao dar seu parecer
contempla uma dificuldade cada vez mais explícita no ambiente jurídico, que se
resume na produção de um direito verdadeiramente emancipatório, na medida em
que se prende a uma opinião pública de uma elite que faz forte oposição à
amplificação de discursos e discussões sociais. Bourdieu entende que o Direito
deve se distanciar de formalismo e do instrumentalismo conforme estes representam,
respectivamente, um distanciamento das lutas sócias populares e uma
aparatização pela classe dominante do Direito positivado. A principal
dificuldade no manejo desse Poder simbólico é democraticamente satisfazer o
sistema em que se enquadra o ordenamento jurídico, sem suprimir direitos fundamentais,
tais como o direito a vida, a intimidade e a liberdade, e que, no entanto, por
oferecer uma forte gama de conflitos entre estes princípios e os fatos julgados, tais questões
estão no núcleo central de problemas que o STF carrega como fardo a resolver. O
entendimento do STF se dá na direção da descriminalização deste tipo de aborto,
sendo possível a concretização de tal fato, pois, moralmente e na norma
positivada, há um caminho legítimo pela tomada da decisão feita, que dão
suporte pra sua realização material, com razoável aceitabilidade da opinião do
grupo dominante, e mostrando cada vez mais que o poder simbólico se caracteriza
como o guardião da razão social ao estabelecer um parâmetro, uma medida que se
deve seguir.
Rafael Cyrillo Abbud
Noturno
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