Em abril de 2012, deferiu-se a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre a interpretação da
interrupção da gravidez de feto anencéfalo como conduta tipificada nos artigos
124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, devendo ser considerada inconstitucional. Mais uma
vez, o direito se apresenta como intermediador de problemas sociais além de sua
área de atuação. Nesse caso, temos um confronto entre os interesses legítimos
da mulher grávida, que busca preservar sua saúde, dignidade e liberdade
principalmente; e os interesses da sociedade, que luta para proteger todos, inclusive
aqueles que não nasceram e possuem baixas chances de sobrevivência. Tal conflito
envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a
autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais.
A expansão do direito nesse
contexto, no qual o Judiciário invade o campo científico, permite a
concretização de premissas abordadas por Bourdieu em A Força do Direito, como a atuação do tribunal em conflitos “inconciliáveis”,
os efeitos da universalização e racionalização das normas jurídicas, a importância
da manutenção da ordem simbólica e os espaços dos possíveis dentro do campo
jurídico. Segundo Bourdieu, no tribunal deve sempre prevalecer a aplicação prática,
livre e racional da norma universal e cientificamente fundamentada, permitindo
os profissionais especializados tomar soluções imparciais. Dessa forma,
espera-se que o direito seja capaz de propor as medidas ideais para os
conflitos sociais. Nesse caso, cabe ao tribunal decidir quais direitos priorizar:
os da mãe, submetida a transtornos físicos e mentais, ou os do feto.
Desde 2004, a Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) traz para o campo jurídico a questão da
antecipação do parto de anencéfalos, que deveria se tornar legalizada, e não
enquadrada como aborto, condenado pelo Código Penal. Segundo a CNTS, a
antecipação terapêutica do parto não implica em aborto porque ele envolve a
vida extra-uterina em potencial e a rejeição da mãe ao feto. Tais condições não
se enquadram na gestação de anencéfalos, uma vez que mais de 50% fetos morrem no
período intrauterino, e quando não, em minutos após o parto.
Contudo, apesar da condenação pela
prática de aborto, a comprovação cientifica de baixa expectativa de vida no
caso de anencefalia permite ao tribunal decidir sobre a permissão ou não da
antecipação do parto. Exemplifica-se assim a ideia de Bourdieu de que o direito
não é independente das pressões sociais, ele sempre se adequa a elas. A manutenção
da “ordem simbólica” implica na adaptação do direito e do campo jurídico ao
novo estado das relações sociais para garantir a legitimação da forma
estabelecida. A norma consolidada ao confrontar a vontade real (do povo),
torna-se inadequada, devendo ser, portanto, atualizada.
O grande problema na decisão
judicial é as divergências da sociedade quanto a questão da antecipação do
parto do feto anencéfalo. Para muitos, o caso trata de aborto eugênico que busca
estabelecer um controle de natalidade, ou então, que fere o direito da criança
de nascer, que nem sequer tem a chance de lutar por sua sobrevivência. Para
tantos outros, a comprovação científica, que não existia na época da publicação
do Código Penal, serve de motivo suficiente para submeter a decisão de antecipar
o parto a gestante, que se encontra em situação limítrofe de vulnerabilidade, sofrimento
e medo. Decidir qual lado está certo implica na dominação simbólica de uma
parte da sociedade. Para Bourdieu, o efeito da universalização, com a
deslegalização ou não da antecipação do parto de anencéfalos, aumenta a autoridade
social imposta pela “cultura legítima” e os seus detentores exercem para dar eficácia
prática à coerção jurídica.
Quanto ao espaço dos possíveis, temos
uma clara expansão da atuação do direito para fora do seu campo delimitado,
invadindo o campo cientifico para ditar no final o que é vida propriamente dita
e protegida pela lei. Apresentado pelo mesmo autor como espaço entre a razão e
a moral, ele não permite que os magistrados deem o sentido que querem às normas sem levar
em conta as pressões sociais. Assim, por mais que eles possuam um “ethos
compartilhado” (mesmo valores e ideologias), não podem
desconsiderar a opinião pública para impor sua decisão. Sendo assim, temos
evidente mudança na postura do direito, que deixa cada vez mais de ser a “arma
simbólica” de seus atores, tornando-se o grande agente das transformações
sociais.
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