Numa sociedade majoritariamente
católica como a brasileira que, apesar de ser um Estado laico, ainda é regida
por uma grande carga da moral religiosa, um tema polêmico como o aborto
torna-se motivo para longas discussões envolvendo o valor da vida, o que ela é,
quando começa etc. O aborto foi descriminalizado em determinados casos, como os
de violência sexual e, mais recentemente, também, no caso de bebês anencéfalos.
Isso nos leva a pensar em como a moral religiosa, tão influente no cotidiano
das pessoas, é seletiva, uma vez que a vida de um bebê gerado num estupro tem
menos valor que a vida de outros, apesar de os dois serem inocentes e não terem
responsabilidade sobre a maneira como foram concebidos.
Apesar de essa ser uma boa discussão,
vamos nos ater ao aborto de anencéfalos relacionando com as teorias de Pierre
Bourdieu. Esse tipo de concessão ao aborto foi feita porque a probabilidade de
um bebê anencéfalo sobreviver é mínima, o que significa que a mãe teria que passar
por todo o desgaste gestacional, sabendo que seu filho não sobreviveria, o que,
possivelmente, lhe causaria um sofrimento maior do que a abreviação da
gravidez. Bourdieu fala da ciência rigorosa do direito que o toma como objeto
de estudo e, assim, esse tipo de exceção a uma atitude que é criminalizada leva
certo tempo para se encaixar nos parâmetros jurídicos. Além disso, o direito se
impõe, ao mesmo tempo, com uma necessidade não só científica, mas moral, que
dificulta ainda mais esse tipo de concessão. Como foi dito, a seletividade da
moral religiosa nos leva a pensar nos interesses, afinidades e hábitos comuns
dos indivíduos, construídos a partir de sua formação, educação etc., e como
isso influencia na opinião pública, que tem grande peso sobre as decisões
judiciais.
O autor aponta, ainda, o fato de a
sociedade se dividir dominantes e dominados. Em nossa sociedade, essa divisão é
baseada, sobretudo, em questões econômicas, isto é, aqueles que possuem maior
poder aquisitivo dominam os que não possuem. Assim, é sabido que mulheres
abortam todos os dias nas mais diversas regiões do país; o conflito se dá
quando algumas dispõem de melhores condições que outras para isso e, desse
modo, muitas morrem na mesa de cirurgia, tornando-se apenas um número na questão
da saúde pública.
Bourdieu fala sobre o “veredicto”, que consiste numa luta simbólica
entre profissionais com competências desiguais, que utilizam os métodos
possíveis para fazer triunfar sua causa. Dessa forma, alguns profissionais buscam as
melhores chances para legitimar as ações de seus clientes, visto que a norma
posta nem sempre contempla a realidade dos cidadãos.
Posto isso, a polêmica que gira em torno do aborto, não apenas de
anencéfalos, mas em geral, carrega consigo, além das questões mencionadas,
questões de ética e liberdade. O direito, infelizmente, não abrange as necessidades reais de todos e pode falhar em suas imposições; em contrapartida, são
esses equívocos judiciais que permitem que alguns profissionais possam atender às
demandas sociais da melhor forma, em meio a uma sociedade que seleciona quais
pessoas podem ou não dispor de seus direitos.
Gabriela Melo Araújo
1º ano - Direito Noturno
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