A ADPF analisada trata da
interrupção da gravidez quando o feto em questão é anencéfalo, isto é, portador
de uma má formação rara do tubo neural, diante da qual a expectativa de vida é
baixíssima e muitas vezes resulta na morte do feto antes mesmo do parto ou de
sua completa formação. Na legislação brasileira, à época do acórdão, o aborto
somente era permitido em casos de estupro ou para proteção da vida da mãe
sendo, portanto, a interrupção terapêutica da gravidez, decorrente da impossibilidade
de vida extrauterina, considerada também um aborto pelos ministros e pelos órgãos
investidos de oficio judicante, apesar de todos reconhecerem os malefícios
inquestionáveis à saúde mental da mulher em questão. Tal interpretação era extraída
do Código Penal, em artigos específicos, em detrimento da Constituição e toda
sua disposição à respeito de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios
da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da
liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde.
Felizmente,
a relatoria decidiu por inconstitucional a interpretação de a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada no Código Penal, respaldada
em alguns fundamentos tais como a não retirada dessa norma (determinados
artigos do CP) do sistema jurídico, nem a afirmação de que ela seja
inconstitucional em seu relato abstrato, permanecendo em vigor com a
interpretação que lhe venha dar a Corte; a noção de que apenas o feto com
capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto,
o que não ocorre com os fetos anencéfalos com absoluta certeza médica; e a
concepção de que impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que
certamente não sobreviverá, causa à gestante dor, angustia e frustação
irreparáveis, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física,
a moral e a psicológica.
Contudo,
faz-se necessário interpretar e analisar com criticidade esse impasse ocorrido
no sistema jurídico brasileiro. Sob a teoria de Bourdieu, por exemplo,
verificamos, na peça em questão, a limitação desse debate complexo ao ‘espaço dos possíveis’. Isso significa
que, apesar de todo o alcance que o Direito pode ter – como recorrer à
sociologia, à filosofia, aos avanços e técnicas médicas e à ciência política,
construindo uma decisão consensual que servirá como jurisprudência em todos os
outros casos semelhantes, unificando a Justiça independentemente de classe
social – ele continua irreparavelmente restrito a um campo limitado, no espaço
dos possíveis, no qual a hermenêutica jurídica e a moral não possuem tanta
liberdade e amplitude assim. Assim, tais
decisões são sempre condicionadas a um sistema e a uma burocracia, de maneira
inflexível: é, afinal, legal o aborto de anencéfalos, entretanto, é
compulsoriamente necessário a apresentação de dois laudos médicos comprovando a
má formação, bem como era necessário também a autorização judicial prévia ou
qualquer outra forma de autorização específica do Estado.
Além
disso, é possível visualizar também a presença e atuação de um campo jurídico definido, em que imperam
valores, códigos e habitus específicos, conforme também preconizado por
Bourdieu. Isso porque, o Direito deve ser entendido como uma ciência rigorosa,
que tem por objeto de estudo a norma, mas que deve evitar tanto o
instrumentalismo, isto é, a ideia de que a interpretação do Direito está a
serviço somente da classe dominante, como também a ideia errônea do formalismo,
que seria o entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais.
Afinal, como mostrado na ADPF, a decisão de legalizar o aborto de anencéfalos
será acessível a qualquer gestante sob tal condição, passando-se pelos mesmos
processos instrumentais, mas também ocorreu nessa decisão uma luta simbólica do
campo jurídico formalista entre o código penal e os operadores do direito;
assim, o direito é capaz de estabelecer uma decisão importante para a qualidade
de vida das mulheres, mas não consegue se desvincular de outros campos como a
Medicina – por meio da apresentação dos laudos – e da própria moral cristã, que
ainda impera forte, apesar do Estado laico, reprimindo ações de liberdade sexual,
mesmo que legais.
Mais do que isso, por essa decisão também é possível analisar como vive-se em uma
sociedade que superestima o conhecimento científico e o exercício da razão: são
os ministros do Supremo Tribunal Federal, que supostamente exercem esse cargo
devido a uma superioridade de conhecimento escolar cientifico, que são constitucionalmente
autorizados a terem responsabilidade sobre acontecimentos importantes da vida
cotidiana de toda a população, os quais ela mesma também deveria ter total
conhecimento e influência sobre. Por fim, talvez o aspecto mais interessante e
produtivo dessa decisão, ao analisá-la sob a ótica de Bourdieu, é verificar a
presença enriquecedora de um Ethos compartilhado. No Direito, há um
habitus muito próximo entre os juristas e os magistrados, isto é, não há
diversificação alguma e, ser mulher dentro desse espaço, portanto, é de uma
liberdade e poder decisório restritos, quase inexistentes. Assim, esse processo
de Judicialização de questões em pauta na vida social faz emergir discussões
pontuais e fundamentais para o entendimento e regulação da sociedade complexa contemporânea,
tirando da invisibilidade personagens outrora oprimidos pelo sistema jurídico,
como a mulher e seu protagonismo sobre o aborto. Apesar das limitações sobre
tal discussão e impedimentos advindos principalmente de um Congresso e uma
Sociedade extremamente conservadores, pautados ainda na moral religiosa tão
mais forte do que qualquer movimento social feminista, tornar visível e
abertamente discutido - mesmo que minimamente - uma questão polêmica como o
aborto é um avanço social significativo, que merece a renovação das esperanças no
sistema jurídico brasileiro e a continuidade dessa luta.
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