No ano de 2012, o STF decidiu que o aborto de fetos anencéfalos, ou seja,
aqueles fetos que possuem má formação do tubo neural, poderia ser realizado
opcionalmente no país – nesses casos, ainda que o feto sobreviva durante toda a
gestação, a expectativa de vida fora
do corpo da mãe é de apenas algumas horas, sendo poucos casos até mesmo de sobrevivência
por dias. Como já se pode esperar, sempre que importantes decisões referentes a
questões que envolvem a vida humana são tomadas no país, os mais diferentes
setores sociais se mobilizam. No caso da situação mencionada, a principal
mobilização contrária à decisão tomada pelo Direito
se fez por parte das instituições religiosas.
Em sua obra, Bourdieu descreve o que
ele chama de campos – esses seriam
espaços de autonomia específica, com valores, códigos e linguagens específicos,
dispondo de recursos característicos, elementos inerentes a sua constituição, e
agindo dentro de um espaço limítrofe. Na questão do aborto de anencéfalos,
segundo sua perspectiva, observa-se claramente a atuação de duas forças
distintas representadas por dois campos com habitus
específicos, como descrevia Bourdieu: o campo jurídico e o campo religioso;
e como se sabe, historicamente, esses dois espaços vem se confrontando
incansavelmente.
Como apontado, nesse cenário o campo
do Direito, dispondo-se de sua devida autonomia, fez uso de sua força interna
e, mesmo não sendo autônomo a pressões sociais, acabou por decidir objetivamente
– os principais argumentos utilizados para respaldar a decisão favorável ao
aborto facultativo de anencéfalos referem-se ao direito da mulher de determinar
o rumo daquela gravidez, a laicidade do Estado, a ausência de expectativa real
de vida do feto afetado por essa má-formação, e o sofrimento psicológico (e os
efeitos físicos) que uma gravidez nesses padrões pode causar às gestantes. As
forças religiosas posicionaram-se, como de costume, com base na afirmação de
que o feto anencéfalo é um ser vivo, e facultar seu aborto seria um atentado
contra uma vida inocente.
O campo do Direito é regulado por
duas forças – a força racional e a força moral. Por um lado, existe a lógica
científica; por outro, a lógica moral, acerca do que é justo e do que é certo.
No caso exposto, coube ao STF evidenciar essa perspectiva de atuação; uma
atuação universal, por considerar ambos os aspectos e atuar sopesando ambos. Agindo
dentro do espaço de possibilidades que lhe cabe, o campo jurídico agiu,
conflitado pelo campo religioso, na sociedade que demandava uma decisão –
assim, percebe-se que a descrição de Bourdieu acerca da delimitação de tais
espaços com habitus específicos que constituem
os mais distintos campos é presença constante na realidade social,
especialmente no que diz respeito ao campo do Direito que, como apontava esse
autor, regula a vida social e política, normatizando a conduta das pessoas
segundo seus recursos, valores e códigos.
Heloísa Ferreira Cintrão
1º Ano - Direito Diurno
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