Considerações sobre a ADPF nº 54 acerca
da gravidez de feto anencéfalo.
Não resta dúvida de que o direto à vida é um dos princípios basilares
da humanidade e de que, por esse prisma, o assunto “aborto” é um ponto de muita
controvérsia. Mesmo considerando a questão em situações mais restritas, não se
foge à polêmica e aos tradicionais argumentos prós e contra a interrupção da
gravidez. Isso ocorreu, por exemplo, no caso da ADPF nº 54/DF, que analisou a
inconstitucionalidade da interpretação de dispositivos do Código Penal que tipificam
como crime o aborto quando se está diante de gestação de feto anencéfalo. Para
este caso específico, em 12/04/2012, o Plenário do STF, por maioria de votos e
não sem certa discussão, julgou procedente o pedido da Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que procurava proteger os profissionais de
saúde (que enfrentam essa difícil situação in
loco, e se veem obrigados a sopesar diversos aspectos, além dos
jurídicos-penais) de eventuais punições impostas pelos tribunais.
O referido julgado é emblemático, pois representa, por um ângulo
racional e jurídico, mais uma etapa em um lento processo de expansão do direito
no sentido de olhar suas normas e sua produção normativa com uma lente
polarizada pela premissa do indivíduo, vivendo situações concretas. Seria
possível dizer que se está diante de uma verdadeira expansão do espaço dos
possíveis, teorizado por Bourdieu, ou seja, uma ampliação da hermenêutica, de
forma a abarcar novas soluções jurídicas. Veja que o Código Penal (cujos
artigos 124, 126 e 128 tratam do aborto) é de 1940, e de lá para cá, o campo
jurídico tem incluído em sua estrutura novos valores, práticas, discursos,
obras jurídicas, enfim, o produto das forças que se desenvolvem nesse campo.
Por exemplo, desde 1948 a comunidade internacional reforça o princípio da
dignidade da pessoa humana; o desenvolvimento tecnológico tem permitido uma maior
precisão nos diagnósticos médicos; a psicologia também tem se aprofundado na
compreensão do espírito humano; a liberdade sexual e a melhora da condição social
feminina têm tido progressos significativos; a Constituição Federal de 1988
passou a tutelar uma ampla gama de direitos fundamentais.
Todos esses avanços têm fornecido fundamentos importantes para que os
agentes do campo jurídico possam construir novos caminhos e novas teses na
estrutura do Direito. Contudo, para que se proceda a uma modificação do corpus
jurídico, ou seja, para se possa se valer do jogo do poder simbólico para produzir
uma alteração do espaço dos possíveis em determinado sentido é preciso atuar de
forma eficaz, armando-se o agente de produção doutrinária, de linguagem jurídica
correta e atendo-se aos rituais jurídicos. E, nesse sentido, é interessante observar
alguns pontos que foram habilmente trabalhados na ADPF nº 54/DF. Primeiramente,
nota-se que o advogado da requerente, Luís Roberto Barroso, reconhecidamente um
agente de prestígio no Direito Constitucional, procurou afastar de pronto a
visão religiosa sobre o assunto, cravando a laicidade do Estado brasileiro. Tratou
ele também de delimitar bastante bem o objeto da ação, deixando claro que se
pleiteava a declaração de inconstitucionalidade da interpretação que
considerava crime a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, e não a
constitucionalidade dos aludidos dispositivos penais. Aliás, acentua uma
mudança importante de paradigma, colocando em foco, não a questão da
interrupção em si, mas a da inviabilidade da vida extra-uterina, conforme
doutrina de Nelson Hungria, e reforçando o uso de um termo mais adequado: “antecipação
terapêutica do parto”. Trabalhou ainda os princípios da liberdade, da autonomia
da vontade, da dignidade da pessoa humana; salientou o direito à saúde e fez o consensual
repúdio a qualquer forma de tortura. Sem esse trabalho, bem fundamentado
juridicamente, talvez o pleito tivesse outra decisão, o que mostra a
dificuldade em se alargar o espaço dos possíveis e, por consequência, promover
a própria expansão social.
Fernando –
1º Ano Direito Noturno (texto sobre o Direito entre o instrumentalismo e o
formalismo - Bourdieu)
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