A existência de uma ciência
que a distingue daquela caracterizada como jurídica, desloca o objeto do
direito – do moralismo – para a compreensão normativa como um meio de relações
sociais, sem ser concebido como mero reflexo dos poderes dominantes. Concepção
internalizada do direito, de que este se reduz à si próprio quando não
considera os fatores sociais, tendo um fundamento específico, “Não passa do esforço
de todo o corpo de juristas para construir um corpo de doutrinas e regras
completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo
nele mesmo o seu próprio fundamento” (BOURDIE, 1989, p. 209). Logo, a crítica
apontada é a de considerar a setorização ideológica como não possível da
influência, limitação ou determinação de quaisquer outra força externa como,
por exemplo, quando se considera a historicização das normas, em que a
atividade interpretativa representa o embate ideológico de um interesse
específico, interesse esse que coexiste com a fluência de outros interesses
externos. Quando se determina o interesse jurídico, há a percepção de que:
(...)
O conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de uma luta
simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais
desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os meios ou
recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das “regras possíveis”, e de os
utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar
a sua causa; o efeito jurídico da regras, quer dizer, a sua significação real,
determina-se na relação de força específica entre os profissionais, podendo-se
pensar que essa relação tende a corresponder à relação de força entre os que
estão sujeitos à jurisdição respectiva (BOURDIE, 1989, p. 224-225)
O julgado é uma ADPF (Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental) nº54, que aborda a decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal ao autorizar a interrupção da gestação de feto anencéfalo –
doença caracterizada pela malformação congênita do feto, com ausência de crânio
e de encéfalo. A questão da arguição consistia em considerar a interrupção da
gestação em crime de aborto – segundo previsto no art. 124 do CP – ou uma
alternativa em relação à baixa potencialidade de possibilidade de vida do feto.
O argumento do STF foi de que não se estaria praticando o crime de aborto, já
que o feto anencéfalo é considerado um natimorto cerebral, não se
problematizando a questão do aborto, mas se adequando a problemática na
estrutura do ordenamento jurídico.
Sendo de legitimidade do Congresso Nacional a análise do
caso, foi-se estendido a atuação do poder judiciário na apreciação do julgado
por ausência de ação determinada pelo legislativo, o qual, em prol da garantia
dos direitos fundamentais, se exige a intervenção judicial. Assim como coloca
Luís Roberto Barroso:
A
vida na democracia é feita pelo processo político majoritário, que se desenrola
no Congresso, e pela proteção e promoção dos direitos fundamentais via
Constituição e Supremo Tribunal Federal. Quando o processo majoritário está
azeitado, fluindo bem, com grande legitimidade, a jurisdição constitucional
recua. E quando o processo político majoritário emperra ou enfrenta dificuldade
para votar determinadas matérias, o STF tem seu papel ampliado (BARROSO, Entrevista concedida ao Jornal O Estado de
São Paulo (08/04/2012, p. A4)
Há de se comentar na pouca autoridade atribuída pelo
votantes do caso para a análise do mesmo, já que se encontravam em maioria
homens que, pelo acidente natural da vida, nunca seriam abrangidos pela sua
própria capacidade atribuída ao voto, ou seja, nunca estariam possivelmente em
risco de gerar um feto anencéfalo,o que os torna absolutamente legais, mas não
legítimos. No entanto, a consideração de que existe a liberdade individual da
mulher em não se submeter ao trauma, ou de escolher sua proteção individual ou
respeito de vontade, é um princípio Constitucional de sua dignidade, como
indivíduo e como ente que necessita de aparato jurídico, já que o tema se
insere numa problemática social de saúde pública.
Bourdie, em sua obra “O
Poder Simbólico”, ressalta que existe uma ambiguidade presente no debate
jurídico, de o reconhecer como uma consequência social mas se apresentar
descolado desta, ou seja, como uma “teoria
pura” que desconsidera as apreensões da realidade. Reconhecer a autonomia
da mulher e sua vontade em relação a interrupção da gestação de feto anencéfalo
pelo STF é uma aproximação da descriminalização do aborto como um crime contra
a vida do feto, para a percepção de que sua vigência é um crime contra a vida
da mulher que, na apreensão da realidade onde não existe a igualdade formal
pela qual a norma hipotética atribui mas, sim, uma desigualdade que tem raça,
classe e gênero, é reconhecer que o princípio fundamental é de garantia da
saúde pública, na realidade onde o aborto já existe, mas onde ele escolhe à
quem criminalizar. Quando Bourdie apresenta a existência de ideologias que se
coexistem numa fluência de interesses distintos entre si, ele apresenta que
determinação são impostas apenas por jogos de poder, sem fundamentos reais da necessidade
coletiva e, por isso, seria um erro tanto considerar o Direito como reduzido à
norma, assim como inocência acreditar em uma possível neutralidade ou não
interferência de fatores externos que, em relação ao caso, podem ser de ordem
religiosa, econômica, política ou de manutenção da estrutura, que se exala de
forma conservadora e patriarcal.
O Direito faz o mundo social, o mundo social que é plural
e real. A lei é somente um ponto de partida, um parâmetro estatal que não
determinada a linha de chegada, apenas demanda uma possibilidade de seu fim.
Logo, deve-se definir qual a ordem do Direito que vai se estabelecer, para que
se alcance uma ideologia firme frente aos demais poderes e seus respectivos
interesses específicos:
O Direito, então, neste enfoque sociológico, contribui para a
produção e reprodução de uma dada ordem social, proclamando e definindo aquela
ordem que será tida como exemplar. Assim, ao consagrar determinada
realidade, o Direito desconhece ou ignora as que
possam coexistir. Nesse contexto, a divisão da realidade leva à desconsideração
ou à negação das demais visões, decorrendo na força e a violência simbólica do
Direito, que, além de construir uma dada realidade social, impõe uma definição
ideológica que passa a ser legítima (KILIAN, 2014)
Karla Gabriella dos Santos Santana – 1º ano Direito Diurno
Referências Bibliográficas:
KILIAN, Katheleen Nicola. O Direito pela perspectiva
de Pierre Bourdieu: as ideologias e o poder simbólico. Maio de 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-direito-pela-perspectiva-de-pierre-bourdieu-as-ideologias-e-o-poder-simbolico,48224.html>
Acesso em 07 de Dezembro de 2015, às 10:48.
BOURDIE, Pierre. O Poder Simbólico, Bertrand Brasil: Rio de
Janeiro, 1989.
Caso Julgado. ADPF nº 54, Disponível em:
Acesso em 07 de Dezembro de 2015, às 10:21.
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