A estrutura jurídica, longe do extremo
formalismo – preconizado por Kelsen – encontra contato, como dito por Bourdieu,
na sociedade, representada por conjuntos de morais, valores que se interagem de
maneira a influenciar a concepção jurídica de maneira que este – o Direito –
não pode, assim, se encontrar livre de qualquer viés social. Portanto,
compreende-se que as transformações sociais – somadas às compreensões de mundo
e história de uma determinada sociedade – de fato corroboram a um Direito que,
por mais que busque uma neutralidade,
possuirá vestígios das relações de poderes.
Parte
1: Reflexão sobre “A dominação masculina”
Logo, o caráter patriarcal permeado na
humanidade terá seu correspondente no Direito, quando este – de qualquer
maneira tentando retirar esses elementos que beiram muitas vezes ao machismo –
teve sua evolução baseada em tais conceitos. De fato,
a dominação masculina está de tal maneira ancorada
em nosso inconsciente que não a percebemos mais, de tal maneira afinada com
nossas expectativas que dificilmente conseguimos repô-la em questão. A
descrição etnográfica da sociedade cabila, verdadeira depositária do
inconsciente mediterrâneo, oferece um instrumento realmente valioso para
dissolver as evidências e explorar as estruturas simbólicas deste inconsciente
androcêntrico, que sobrevive nos homens e mulheres de hoje.[1]
Bourdieu trabalha a
forma como os meios sociais e culturais reproduzem uma realidade, embasada
pelos seus princípios (“Quais os mecanismos
e instituições – Família, Igreja, Escola ou Estado –, que realizam o trabalho
de reprodução? É possível neutralizá-los para liberar as forças de
transformação que eles estão conseguindo entravar?”[2]), os quais, como
dito, são ramificações de uma evolução histórica. Os “mecanismos e instituições”, de maneira voluntária ou involuntária
– por isso, quase imperceptível quando não se coloca em uma postura crítica –
padronizam um comportamento, naturalizando-o e compondo um sistema reprodutor
de ideologias, valores, etc. (por vezes da “classe” dominante/ mais influente);
o que, atualmente, apesar de existirem aqueles cuja atuação é mais clara e
temos conhecimento de sua “política”, existem outros – como a Escola – que, ao
contrário do que se espera (produtora de alunos e futuros cidadãos de
posicionamento crítico), atuam, na maioria, da mesma maneira que os outros
sistemas – de modo que, por possuir esse filtro que esconde sua realidade, esta
influência no pensamento humano pode ser colocada como “às escuras”.
A composição ideológica aplicada por
estes meios reflete a presente – talvez mais influente – em nossa sociedade, de
claro caráter androcêntrico e
patriarcal, o que implica na crença em um papel “secundário” feminino. Como
adverte Bourdieu, alguns mecanismos que perpetuam esse comportamento perderam
força “e a dominação masculina tenha
perdido algo de sua evidência imediata”[3], porém, mesmo com
ligeiros avanços, “alguns dos mecanismos
que fundamentam essa dominação continuam a funcionar, como a relação de causalidade
circular que se estabelece entre as estruturas objetivas do espaço social e as
disposições que elas produzem, tanto nos homens quanto nas mulheres.”[4] Estes, como
tentativa de fundamentação revelam um sistema evidentemente preconceituoso.
As injunções continuadas, silenciosas e invisíveis,
que o mundo sexualmente hierarquizado no qual elas são lançadas lhes dirige,
preparam as mulheres, ao menos tanto quanto os explícitos apelos à ordem, a
aceitar como evidentes, naturais e inquestionáveis prescrições e proscrições
arbitrárias que, inscritas na ordem das coisas, imprimem-se insensivelmente na
ordem dos corpos.[5]
Parte 2:
Os símbolos
Sobre as aceitações,
destaca-se – no caso proposto – a invasão masculina na decisão acerca o aborto
de anencéfalos, parte específica de um assunto muito mais amplo: abortos.
Trata-se de uma questão envolvendo em primeira instância: o feto e a mulher.
Era de se esperar que a decisão fosse feita dentro desse círculo, ou seja,
partindo da mulher; mas, como segunda instância, surgem outros atores que não
deveriam se relacionar ao peso desta escolha. Surgem portanto, a força dos
símbolos e das instituições que os carregam.
Como poder simbólico, compreende-se como
aquele “poder de construção da realidade
que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e,
em particular, do mundo social)”[6]. É, pois, devido
ao caráter estruturante que lhe é
intrínseco – por ser ele próprio estruturado
–, “uma concepção homogênea do tempo, do
espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as
inteligências.”[7]
O elemento
universalizante dos instrumentos simbólicos são claros quando se analisa
conjuntamente a estes, a ideologia. Estas servem interesses particulares
visando homogeneizar – universalizar –
os interesses.
“A
cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante [...];
para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à
desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para legitimação da
ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e
para a legitimação dessas distinções.”[8]
Tem-se, pois, que o
caráter simbólico de uma dominação objetiva tanto legitimar esta dominação
quanto fortificação de quem domina – pela integração
da classe dominante. O campo simbólico é um meio de lutas e tentativas de
imposição de um “modo de ver o mundo” – símbolos
– de cada classe. Assim, os instrumentos simbólicos, como
instrumentos de dominação, relacionam-se ao poder, às ideologias e à “classe”
dominante.
Sobre a dominação
masculina, um “fator determinante na
perpetuação das diferenças é a permanência que a economia dos bens simbólicos
(do qual o casamento é uma peça central) deve à sua autonomia relativa, que
permite à dominação masculina nela perpetuar-se.”[9] Tal dominação,
apoiada por sistemas diversos, estrutura um sistema
simbólico, que – como já explicado – visa construir e manter uma
organização baseada em uma legitimidade de violência simbólica. A família, como
peça dessa organização de dominação e tida como “guardiã do capital simbólico”[10], recebe tanto
apoio da Igreja quanto do Direito.
Retomando: o Direito –
assim como outras instituições – tem, como elementos estruturadores, certas
pulsões de instrumento simbólico; no
entanto, o avanço das conquistas sociais – as lutas no campo simbólico –
retiraram de sua substância parte de seu caráter androcêntrico; retirar este caráter significa desconstruir os
valores e ideais – símbolos – do Direito.
O
campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o
direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se
defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que
consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar [...] um
corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.[11]
O Direito, pelo aspecto
ordenador – e principalmente pela rigidez normativa que este se aplica, muitas
vezes em face às transformações – carrega consigo uma visão – leitura – de sociedade
que dificilmente se altera; portanto, as tensões do mundo social forçam ao
máximo transformações no mundo normativo, visto que “no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de
apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial”[12]. Porém, mesmo
contra certos textos normativos, o intérprete encontra-se diante de um sistema
duramente hierarquizado, em que “a
Justiça organiza [...] não só as instâncias judiciais e os seus poderes [...]
mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade e essas
decisões.”[13].
Fica evidente portanto que a construção do Direito baseada nos símbolos – em sua
estruturação simbólica – influencia na maneira de como este constrói um sistema
normativo – estrutura as normas e a perspectiva de sociedade – de modo que esta
instituição se fecha diante à mudanças. Estas sendo possíveis sempre dentro de
um potencial, colocado normalmente entre a Razão e a Moral.
Parte 3:
A decisão
A ADPF 54/DF demonstra
o embate existente entre a Razão e a Moral existente no plano jurídico quando
relaciona o caso de extrema complicação e risco à mulher com o ato do aborto –
e as significações que este carrega, pelos símbolos que lhe são atribuídos pela
Igreja, pela família e pelo Estado.
Ao
sustentar a descriminalização da prática, o ministro e relator Marco Aurélio de
Mello afirmou: “A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se
sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a
qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”. Para ele, “é
inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver
prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade
no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física,
psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição”[14]
Apesar da aprovação, alguns votos contra se destacaram, como são os casos
de:
Ricardo
Lewandowski votou contra a permissão do aborto, considerando que esse poderia
ser um precedente para a liberação da interrupção de gestações em outros tipos
de más-formações fetais. A sessão foi então encerrada com o segundo voto
negativo, do presidente do STF, Cezar Peluzo, que considerou a descriminalização
do aborto de anencéfalos um “massacre”.[15]
Por fim, “com a nova decisão, a anencefalia passa a ser equiparada à morte
encefálica e, portanto, permitida na legislação brasileira, que considera
atualmente o aborto como crime punível, exceto em condições de risco de vida
materna ou decorrente de estupro.”[16]
Direitos às mulheres foram garantidos com a nova decisão e, apesar de invisíveis,
grandes alterações podem ser deduzidas no campo simbólico, quando se prevalece
a integridade da mulher em detrimento da visão maternal que lhe é atribuída –
em conjunto com outros diversos papéis e símbolos.
Roan Dias - 1º ano Direito diurno
Bibliografia:
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 ed. 2
_____________ O poder simbólico. Rio de Janeira: Bertrand Brasil, 2004 ed. 7
OLIVEIRA, Flávia Ribeiro de; CAMARGOS, Aroldo Fernando. Descriminalização do aborto de anencéfalos: a conquista de um direito e o início de vários dilemas éticos Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n3/a3215.pdf; Acesso em 05/12/2015 as 17:52
[1] Comentário de Maria Helena Kühner
sobre a obra “A dominação masculina”, presente na contracapa.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 ed. 2
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 ed. 2
[3] BOURDIEU, Pierre. Op. cit p. 71
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] BOURDIEU, Pierre. O poder
simbólico. Rio de Janeira: Bertrand Brasil, 2004 ed. 7 p. 9
[8] BOURDIEU, Pierre. O Poder... p. 10
[9] BOURDIEU, Pierre. A dominação...
p. 115
[10] Ibidem
[12] BOURDIEU, Pierre. O Poder... p
213
[13] Idem, p. 214
[14] OLIVEIRA, Flávia Ribeiro de;
CAMARGOS, Aroldo Fernando. Descriminalização do aborto de anencéfalos: a
conquista de um direito e o início de vários dilemas éticos p. 1
[15] Ibidem
[16] Ibidem
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