O meio
jurídico pertence à arena dos fenômenos sociais, diferenciando-se dos demais pelos
seus valores, rituais, códigos e cerimonial específicos. O Direito traz não
apenas ordens de conduta humana, como a teoria de Hans Kelsen preconiza, embute
formalismo e instrumentalismo, que servem aos interesses dos dominantes.
Esse distanciamento
do mundo social é reforçado pelo uso da linguagem, que confere ao Direito uma
retórica impessoal, portanto, universal e neutra. Pierre Bourdieu contesta essa
suposta autonomia absoluta do Direito.
Bourdieu
aponta a necessidade de aplicar o Direito de acordo com o mundo social, sem a
frieza dos códigos e ritos processuais. A suposta postura universalizante do
Direito mascara uma relação de forças entre teóricos - atenção à sintaxe - e magistrados
- atenção à pragmática. A autonomia e autossuficiência do Direito devem ceder à
urgência que a prática exige.
A decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) favorável ao aborto de anencéfalos é exemplo
claro da manifestação da jurisprudência orientada à casuística, de modo a construir
um novo Direito, que rompe com a ideologia da independência. A hierarquia do
campo jurídico pode ser abalada, mas a inovação é indispensável à sobrevivência
do sistema jurídico como um todo, sobretudo pela revelação da justiça a partir
da letra da lei.
A
consideração da dor de famílias que aguardam o desfecho trágico de uma gravidez
sem possibilidade de sucesso pode parecer contrária ao que recomenda a lei, que
defende a vida. Vale dizer que a interpretação estrita da lei não consideraria
sequer a análise técnica de especialistas da área médica. A decisão do STF envolve
considerações técnicas alheias ao Direito e atende ao suplício dessas famílias
pela interrupção não da gravidez, mas sim da angústia e da dor que carregam no
seio familiar. É preciso expandir a interpretação jurídica e conferir mais
elasticidade às leis.
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