A PGR impetrou ADPF contra a Prefeitura
Municipal de Ipatinga-MG em função de a lei municipal 3.491, de 28 de agosto de
2015, pois esta, em seu artigo 3.º, determinava a proibição de o Poder
Executivo Municipal adotar estratégias educativas em temas relacionados à
diversidade de gênero e/ou ideologia de gênero e educação sexual. A PGR elencou
diversos preceitos constitucionais contrariados pela lei supracitada (direito à
igualdade, vedação à censura, laicidade do Estado, competência privativa da
União para legislar sobre Diretrizes e Bases da Educação, pluralismo de ideais
e de concepções pedagógicas, direito à liberdade de aprender, ensinar e
divulgar o pensamento, a arte e o saber.
Ao lermos o voto da procedência e adequação
da ADPF, proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, é
possível identificar relações com os conceitos do capítulo “A Força do Direito
– Elementos para uma sociologia do campo jurídico” da obra “O Poder Simbólico”,
de Pierre Bourdieu.
Em seu texto, o Ministro Gilmar Mendes
enfatiza que a ADPF é o instrumento adequado para o caso em questão, pois:
- preenche espaço residual expressivo no
controle de constitucionalidade
- supre eventuais demoras na definição de
decisões sobre importantes controvérsias constitucionais e;
- relevância de interesse público presente no
caso.
No transcorrer dos argumentos, é citada a LDB
da Educação, que prioriza em seu artigo 3.º pluralismo de ideias, respeito à
liberdade e apreço a tolerância.
Bourdieu propõe que a “prática teórica da
interpretação de textos jurídicos não tem nela própria a sua finalidade, diretamente
orientada para fins práticos, ela mantém a sua eficácia à custa de uma
restrição de sua autonomia”. A ADPF, combinada com o conteúdo da
Constituição no tocante à distribuição de competências é um bom exemplo – lei
municipal tenta limitar a possibilidade de abrangência de opinião em suas
escolas contrariando o preceituado pela Constituição e pela LDB federal. Além
disso, tal proposta de lei caminha de forma contrária aos ideais de liberdade,
respeito à pluralidade de opiniões e prática de tolerância da Carta Maior. A
PGR e o STF lançam mão de instrumento jurídico existente com o intuito de proibir
tal lei, até porque o relevante interesse público é nítido, pois outros
municípios também tentaram propor lei com conteúdo semelhante (Foz do Iguaçu –
PR). Assim, os fins práticos propostos por Bourdieu são atingidos com a ADPF –
autonomia de instrumentos jurídicos para contrapor à preconceituosa lei são
poucos mas os que existem são dotados de eficácia de expor os preconceitos
existentes nos representantes do povo no legislativo de uma das cidades do aço
mineira.
Em relação ao habitus jurídico, Bourdieu
reconhece que “assim como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza as
instâncias judiciais, os poderes e suas interpretações, bem como normas e
fontes que conferem suas decisões.” De forma adicional, “a coesão do
habitus espontaneamente orquestrado dos intérpretes é aumentada pela disciplina
de um corpo hierarquizado que põe em prática procedimentos codificados de
resolução de conflitos”. Dentre as fontes que serviram de base
argumentativa para as leis federais citadas por Gilmar Mendes, destacam-se
normas e tratados internacionais proibitivas de discriminação dos quais o
Brasil é signatário, como:
- Declaração Universal dos Direitos Humanos;
- Convenção Americana dos Direitos Humanos;
- Pacto Internacional sobre Direitos Civis.
Percebe-se, assim, que a coesão do habitus,
ao menos na esfera federal, tem sido pautada com razoabilidade pelo respeito e
pelo combate à intolerância de esferas estaduais e municipais (alguns juízes de
primeira instância acham que movimentos feministas subvertem a ordem e produzem
degradação moral, conforme outro julgado proposto pelo Professor Agnaldo).
Ao analisarmos o campo jurídico sob a ótica
de palco de conflitos entre a lógica da ciência e a lógica da moral, pode-se
conferir o papel da lógica ao aparato instrumental jurídico da União e da carta
Maior no caso da ADPF 467. A constituição federal abarca o respeito e a
tolerância como valor fundamental à dignidade humana sob a égide de que a nação
brasileira caminha consoante às necessidades mundiais de respeito aos direitos
humanos. No microcosmo municipal, a Câmara Legislativa de Ipatinga efetuaria o
papel de tentar impor lógica moral, em que apenas um dos dezenove vereadores da
casa supracitada votou contra a lei (https://www.diariodoaco.com.br/noticia/0072704-ministro-do-stf-suspende-lei-que-proibia-ensino-sobre-genero-e-orientacao-sexual-em-ipatinga).
De acordo com Bourdieu, a “universalização
é um mecanismo poderoso a partir do qual se exerce a dominação simbólica ou a
imposição de legitimidade de ordem social. A norma jurídica tenta
consagrar em forma de um conjunto coerente de regras oficiais os princípios
práticos de um estilo de vida simbolicamente dominante, tendente a informar as
práticas dos agentes. Tal efeito de normalização aumenta a autoridade social
que a cultura legítima e seus detentores já exercem para dar eficácia prática à
coerção jurídica.” A LDB propõe que
a tolerância e a pluralidade de aprendizado é valor social para a formulação de
políticas públicas de ensino, e tal valor possui simbologia poderosa para
confrontar intolerância em geografias pontuais. A coerção jurídica é atingida pela
legitimidade cultural da pluralidade abarcada por lei federal e por instrumento
de suspensão legal local.
Por fim, Bourdieu trata da “regra de direito
capaz de supor a conjunção da adesão a valores comuns marcada ao nível do
costume, pela presença de sanções espontâneas coletivas como a reprovação
moral.” A casa legislativa de Ipatinga tentou suprimir das práticas locais
educacionais a tratativa de assuntos de ideologia de gênero, em uma clara
tentativa de dar a esses temas qualificações reprováveis sob o ponto de vista
moral. A coletividade elegeu vereadores que entendem que é sancionável o
município abarcar assuntos do tipo em sua educação de base. Talvez as verbas de
gabinete devam ser mais bem utilizadas na contratação de assessores jurídicos,
com o intuito de poupar tempo da Procuradoria do município e de propor leis
mais úteis e respeitosas aos interesses difusos e coletivos.
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