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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

ANALISE DE JULGADO SEGUNDO BOURDIEU

 

Em novembro de 2019, na 3ª Vara Cível da Comarca de Franca/SP, foi proferida sentença nos autos do processo n° 1020336-41.2019.8.26.0196, pela Juíza de Direito Adriana Gatto Martins Bonemer, na qual se discutiu, entre outras questões, a apologia ao estupro em trote da UNIFRAN.

O Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública em face de Matheus Gabriel Braia alegando, em breve síntese, que “o requerido, ex-aluno da UNIFRAN, explorando momento de comemoração por aprovação em vestibular de Medicina na referida instituição, fez com que calouros entoassem, coletivamente, durante o trote universitário, a pretexto de se tratar de hino, expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico, expondo-os à situação humilhante e opressora e ofendendo a dignidade das mulheres ao reforçar padrões perpetuadores das desigualdades de gênero e da violência contra as mulheres”, elucidando, ainda, que “a conduta praticada pelo requerido ultrapassou os limites toleráveis de uma simples brincadeira, pois reforçou o machismo e colocou a mulher em posição de inferioridade”, reproduzindo, assim, ideias que remetem à cultura do estupro, estimulando agressão e violência.

A atuação judicial aqui trazida será discutida adiante. Antes, todavia, cumpre esclarecer algumas categorias teóricas trabalhadas por Bourdieu.

Para Pierre Bourdieu, o campo é um espaço social formado por princípios e regras próprias, podendo-se inferir a ideia de esferas autônomas da vida em sociedade, envolvendo relações sociais e sistemas hierárquicos de dominação. O campo jurídico, especificamente, “é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o Direito”. Nele nos deparamos com agentes competentes para interpretar normas de forma autorizada.

Fundamental, ainda, ressaltar a existência de um habitus, que para Bourdieu trata-se da imposição cultural retratada pelo conhecimento adquirido e incorporado a um indivíduo que, por sua vez, age e realiza suas escolhas com base neste conceito, ou seja, relaciona-se com o conhecimento assimilado ao longo de sua trajetória, agregado por fatores religiosos, sociais, políticos, etc.

Por sua vez, o poder simbólico é o poder de transformação por meio de palavras. Trata-se do acúmulo de recursos trazidos para o indivíduo, que se expressa pela luta concorrencial e a simples condição de gênero para representar ser um possuidor de poder. No exercício do poder simbólico, o Poder Judiciário resolve os conflitos surgidos entre pessoas e entre coisas declarando o que elas são. Assim, o detentor de poder simbólico que o exerce com arbitrariedade, sem assumi-la, pratica a violência simbólica.

A leitura do inteiro teor desse importante julgamento permite sugerir a influência das categorias teóricas trabalhadas por Bourdieu na absolvição do acusado. A juíza, ao julgar improcedente a ação, afirmou que o requerido não causou ofensa à coletividade das mulheres, tendo, na sua argumentação menosprezado a luta feminista, especialmente quando elucidou que “movimento feminista apenas colaborou para a degradação moral que vivemos”.

Ao exercer o poder simbólico, os atores que concorrem pelo direito de dizer o Direito, às vezes, ocultam as verdadeiras razões para terem formulado a visão de mundo que desejam consagrar. O juiz que, no dever de fundamentar suas decisões, constrói um discurso que dissimula sua motivação real e, mesmo assim, logra a legitimação necessária para que seus enunciados sejam reconhecidos como jurídicos e, portanto, obedecidos.

Sob essa perspectiva, ao considerar a fundamentação, ficou demonstrada inequivocamente a visão preconceituosa e conservadora da juíza aplicadora do Direito, restando claro e evidente que toda a argumentação foi pautada em uma visão pessoal, claramente antifeminista.

É inegável que as ações de um indivíduo vão ser de acordo com a influência vinda dos campos no qual ele está inserido e da classe social que ele se encontra, portanto, é perceptível que o direito se torna meio de propagação e continuação da violência simbólica teorizada por Bourdieu.


Jéssica Maria Gregio - Noturno

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