Em novembro de 2019, na
3ª Vara Cível da Comarca de Franca/SP, foi proferida sentença nos autos do
processo n° 1020336-41.2019.8.26.0196, pela Juíza de Direito Adriana Gatto
Martins Bonemer, na qual se discutiu, entre outras questões, a apologia ao
estupro em trote da UNIFRAN.
O
Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública em face de
Matheus Gabriel Braia alegando, em breve síntese, que “o requerido, ex-aluno da
UNIFRAN, explorando momento de comemoração por aprovação em vestibular de
Medicina na referida instituição, fez com que calouros entoassem,
coletivamente, durante o trote universitário, a pretexto de se tratar de hino,
expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico, expondo-os à
situação humilhante e opressora e ofendendo a dignidade das mulheres ao
reforçar padrões perpetuadores das desigualdades de gênero e da violência
contra as mulheres”, elucidando, ainda, que “a conduta praticada pelo requerido
ultrapassou os limites toleráveis de uma simples brincadeira, pois reforçou o
machismo e colocou a mulher em posição de inferioridade”, reproduzindo, assim, ideias
que remetem à cultura do estupro, estimulando agressão e violência.
A
atuação judicial aqui trazida será discutida adiante. Antes, todavia, cumpre
esclarecer algumas categorias teóricas trabalhadas por Bourdieu.
Para
Pierre Bourdieu, o campo é um espaço social formado por princípios e regras
próprias, podendo-se inferir a ideia de esferas autônomas da vida em sociedade,
envolvendo relações sociais e sistemas hierárquicos de dominação. O campo
jurídico, especificamente, “é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito
de dizer o Direito”. Nele nos deparamos com agentes competentes para
interpretar normas de forma autorizada.
Fundamental,
ainda, ressaltar a existência de um habitus, que para Bourdieu trata-se
da imposição
cultural retratada pelo conhecimento adquirido e incorporado a um indivíduo
que, por sua vez, age e realiza suas escolhas com base neste conceito,
ou seja, relaciona-se com o conhecimento assimilado ao longo de sua trajetória,
agregado por fatores religiosos, sociais, políticos, etc.
Por
sua vez, o poder simbólico é o poder de transformação por meio de palavras.
Trata-se do acúmulo de recursos trazidos para o indivíduo, que se expressa pela
luta concorrencial e a simples condição de gênero para representar ser um
possuidor de poder. No exercício do poder simbólico, o Poder Judiciário resolve
os conflitos surgidos entre pessoas e entre coisas declarando o que elas são. Assim,
o detentor de poder simbólico que o exerce com arbitrariedade, sem assumi-la,
pratica a violência simbólica.
A leitura do inteiro
teor desse importante julgamento permite sugerir a
influência das categorias teóricas trabalhadas por Bourdieu na absolvição do
acusado. A juíza, ao julgar improcedente a ação, afirmou que o requerido não
causou ofensa à coletividade das mulheres, tendo, na sua argumentação
menosprezado a luta feminista, especialmente quando elucidou que “movimento feminista
apenas colaborou para a degradação moral que vivemos”.
Ao
exercer o poder simbólico, os atores que concorrem pelo direito de dizer o
Direito, às vezes, ocultam as verdadeiras razões para terem formulado a visão
de mundo que desejam consagrar. O juiz que, no dever de fundamentar suas
decisões, constrói um discurso que dissimula sua motivação real e, mesmo assim,
logra a legitimação necessária para que seus enunciados sejam reconhecidos como
jurídicos e, portanto, obedecidos.
Sob
essa perspectiva, ao considerar a fundamentação, ficou demonstrada inequivocamente a visão
preconceituosa e conservadora da juíza aplicadora do Direito, restando claro e evidente
que toda a argumentação foi pautada em uma visão pessoal, claramente
antifeminista.
É inegável que as ações de um indivíduo vão ser de acordo com
a influência vinda dos campos no qual ele está inserido e da classe social que
ele se encontra, portanto,
é perceptível que o direito se torna meio de propagação e continuação da
violência simbólica teorizada por Bourdieu.
Jéssica Maria Gregio - Noturno
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