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terça-feira, 19 de outubro de 2021

SOBRE A LIMINAR COTRA A MEDIDA DO PREFEITO FRANCANO

 A matéria de análise é a liminar de um juiz escrita contra o prefeito de Franca, que teria decretado em março deste ano a proibição, dentre outras, das atividades de “lotéricas e correspondentes bancários”. O juiz se posicionou crítico em relação ao posicionamento do prefeito, apresentando argumentos de cunho jurídico, ético e estatístico de que a medida se trata, na realidade, de um equívoco.

A fim de fazer a primeira análise, é primeiro necessário compreender a noção de campos e habitus. Bourdieu coloca o campo como sendo um espaço social simbólico, composto por ocupantes de grupos que divergem em interesses e que, portanto, estão num conflito constante. Por sua vez, o habitus seria um princípio correlativo ao arranjo de práticas e ideias característicos de um determinado espaço social (campo).

Assim sendo, observamos ao longo do texto como o autor se preocupa em colocar a liberdade – expressa através de menções enfáticas à artigos de leis que a enaltece – a cima da segurança, de qualquer ideal de um bem-comum. Em suas palavras: é “inadmissível [...] que alguma autoridade, [...], possa suspender as garantias constitucionais dos cidadãos fora dos estritos limites dos estados de sítio ou de defesa, ainda que sob o enganoso pretexto de ‘salvar vidas’”.

Observamos que o habitus do juiz, no campo político e jurídico o qual está inserido, se manifesta um viés mais liberal do direito, ao enfatizar a liberdade sobre a segurança, ou o bem-geral. Em oposição à essa ideia, aqueles que enxergam como objetivo do Estado proporcionar o bem-geral, de fato para salvar vidas, se posicionariam contrários ao posto pelo juiz, evidenciando o epíteto conflituoso entre os ocupantes dos campos – segundo seus interesses.

Partindo para a próxima análise, duas frases do autor me despertaram interesse: sobre o lockdown, é “prejudicial, levando o povo à pobreza, à depressão, à queda de imunidade, prejudicando o tratamento de outras doenças, desestabilizando as famílias, comprometendo uma geração de estudantes, etc.”; e “novamente, o maior prejuízo será da população de baixa renda, que mais se utiliza dos serviços das lotéricas”.

Bourdieu nos apresenta um conceito sobre o direito que, para ele, deve ser evitado, o formalismo. O formalismo seria a ideia de um direito fechado em si mesmo, autônomo em relação às pressões sociais. No caso, há um objetivo abstrato, muitas vezes incerto, que ignora seus efeitos paralelos deletérios para chegar ao fim pensado, indiferente quanto às pressões sociais concretas ou potenciais. Vemos, em outra mão, a preocupação do autor do texto em querer adequar a lei segundo as intempéries provocados pelo lockdown, conforme exemplificou.

Concomitantemente, diga-se de passagem, no outro extremo a ser evitado, temos o instrumentalismo, que seria algo como o direito enquanto instrumento, ferramenta, das classes dominantes. A exemplo, temos os bilionários, que tiveram como corolário das medidas de limitações da ação humana no âmbito da economia durante a pandemia – algo que deu a eles inúmeros privilégios no mercado – suas fortunas aumentadas em alto nível1. É evidente que, assim sendo, estariam eles interessados na permanência de leis como as do lockdown.

Para o bourdieusianismo, voltando para a questão dos problemas paralelos do lockdown conforme posto pelo juiz, a dinâmica do direito engendra, claro, uma ordem positiva da ciência, entretanto ela deve ser somada às lógicas normativas da ética e da moral. Pensando dessa maneira, levando em conta a incognoscibilidade de muitas discussões sobre ética, considero que as questões de ética envolvendo o lockdown são demasiadas complexas para a formação de uma posição sólida, pouco podendo saber se, por exemplo, neste caos os fins justificariam os meios.

Como última análise, o juiz, ao longo de sua dissertação, apresenta uma dúvida: “como pode um serviço ser considerado essencial em um município e em outro não, em um Estado sim, mas em outro não?”. Para perscrutar sobre a questão levantada, ressalta-se o que Bourdieu diz a respeito de um ideal de um direito que teria como parte um caractere universalizante. De acordo com suas ideias, as normas do direito deveriam ter um caráter universal, porque através de um esforço silogístico, “todas as demandas sociais encontrariam norma correspondente, regulamentadora, não havendo, em consequência, nem lacunas e tampouco antinomias [isto é, antíteses] verdadeiras entre regras” (Pinheiro, 2012)2. A pergunta levantada é prova de que o ideal é de fato inalcançável.

1Por que ricos ficaram mais ricos e pobreza explodiu na pandemia? UOL, 2020. Disponivel em: <www.economia.uol.com.br/noticias/rfi/2020/09/30/por-que-ricos-ficaram-mais-ricos-e-pobreza-explodiu-na-pandemia.htm>. Acesso em: 13 de out. de 2021.

2PINHEIRO, Wecsley dos Santos. Reflexões sobre o campo jurídico a partir da sociologia de Pierre Bourdieu. Jus.com.br, 2012. Disponivel em: <www.jus.com.br/artigos/21579/reflexoes-sobre-o-campo-juridico-a-partir-da-sociologia-de-pierre-bourdieu/2>. Acesso em: 13 de out. de 2021.

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