Há pouco mais de dois anos, em treze de junho de 2019 o Supremo Tribunal Federal realizou uma decisão histórica ao permitir a criminalização da homofobia e transfobia. Com oito votos favoráveis e três contrários, os ministros da corte decidiram que até que o Congresso Nacional crie uma tipificação específica para a LGBTQfobia, atos de preconceito e discriminação contra homossexuais e transexuais deverão ser julgados de acordo com o crime de racismo (Lei n°9459, de 13 de maio de 1997), o qual prevê de um a três anos de prisão e multa.
Tal decisão se deu por contemplação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão perpetrada pelo Partido Popular Socialista (atual Cidadania) e reforçada através do mecanismo Amicus curiae por organizações LGBTQI+ como o Grupo Gay da Bahia - GGB. Ou seja, o PPS entrou com uma ação no STF para contestar uma demora, por eles vista como inconstitucional, por parte do Congresso em criar leis que especificamente combatam e punam a homofobia e a transfobia. Tal demora na criação de tais normas, eles argumentam, vai em desencontro ao dever por parte do estado de zelar e proteger as diferentes formas de orientação sexual, as quais de acordo com a constituição de 1988 gozam de isonomia. Um dos intuitos, portanto, da ação é transpor para a prática essa isonomia e proteger assim as minorias sexuais. Ela então, para conseguir alcançar este fim, consta com noventa e oito páginas, ao longo das quais há uma detalhada explicação sociocultural dos danos que a homofobia e transfobia exercem na comunidade LGBTQI+ e como estes danos, apesar de diferente natureza, podem sim ser equiparados ao racismo.
Este importante julgamento do STF pode ser analisado sob duas perspectivas. Primeiro sob uma geral. A homofobia e transfobia matam, é necessário ter isso em mente para este debate. De acordo com a Associação Nacional de Transexuais e Travestis e com a GGB, o Brasil é o país que mais mata transexuais e homossexuais respectivamente. Em um país homofóbico como o Brasil, facilmente palavras de ódio se transformam em atos de violência. Quando não há punição para tais discursos odiosos, quem os pratica se sente legitimado em tais atitudes, perpetuando assim as atitudes de ódio e impunidade. Por isso a necessidade da criminalização da homofobia e transfobia, para quebrar este ciclo de ódio e preconceito.
Agora analisando o julgamento sob a perspectiva da ideias do Bourdieu, há aspectos interessantes de se mencionar. Por mais que o Brasil ainda seja um país bastante preconceituoso, ele indiscutivelmente já foi mais, com a situação das minorias, ainda que progredindo a passos lentos, cada vez melhor. Isso é fruto do crescente aumento de capital social que a comunidade LGBTQI+ goza. Este é instrumento fundamental para que possam ter mais voz na sociedade e promover seus interesses. Esse aumento é por conta das mudanças de atitude da sociedade em relação a homossexualidade, principalmente em decorrência da secularização; uma vez que a principal fonte da homofobia são as religiões abraâmicas, as quais condenam a homossexualidade como pecaminosa e fruto de degeneração e libertinagem. Com a secularização, há cada vez mais ateus e agnósticos; enquanto os que permanecem religiosos aderem com menos fervor aos dogmas religiosos. Esse ambiente menos hostil permite que mais pessoas "saiam do armário", aumentando assim o número de LGBTQI+ assumidos, os quais são mais propensos a lutar pelas pautas de sua comunidade. Este conjunto de fatores contribui para a formação do poder simbólico da comunidade, a qual é empenhada em expandir sua visão de mundo (a de que a homossexualidade é uma manifestação natural e saudável da diversidade biológica humana). O STF, apesar não ser um corpo eleito pelo povo, naturalmente é influenciado pelas demandas da população e busca em diversas ocasiões saciar os anseios populares. O campo jurídico e sua relação com a sociedade remetem a Terceira Lei de Newton; o primeiro afeta o segundo ao mesmo tempo em que o contrário também ocorre. Portanto, o STF por mais que tenha a maioria de seus ministros com perfil progressista (como analisado pelo discente Marcus Vinicius de Farias em sua iniciação científica), dificilmente teria deliberado tal fundamental decisão se não houvesse demanda da sociedade para tal ou se a maioria absoluta desta fosse fanaticamente anti-LGBTQI+. Os ministros, por mais que pessoalmente possam ser inclinados a apoiar a causa da comunidade LGBTQI+, só foram capazes de criminalizar a homofobia por conta da existência na sociedade de condições para tal, estas oriundas do poder simbólico emanado pela comunidade. Desta forma, creio que é assim que o pensamento "bourdiano" contribui para compreender este julgamento histórico e os antecedentes sociais que o possibilitaram.
https://drive.google.com/file/d/1EjMPIaypF7HCR19zCFXHSHJFYy7nOO_V/view
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