Consequência direta da exploração colonial, a concentração
fundiária assola o Brasil desde a instituição das primeiras propriedades
monocultoras, logo, desde o início da colonização. Essa singularidade da
economia adotada no processo colonial latino-americano resultou em uma
configuração socioeconômica de extremos na contemporaneidade: o agronegócio moderno
disputa com a agricultura familiar em uma realidade na qual os grandes latifúndios
convivem ao lado do vasto contingente de trabalhadores sem acesso à terra.
Nessa conjuntura, os pequenos produtores lutam por um assentamento e pelo
direito de produzir, enquanto os grandes latifundiários defendem a manutenção de
suas propriedades, estabelecendo uma luta contínua de interesses antagônicos.
Essa oposição é um exemplo da disputa conceituada pelo sociólogo francês Pierre
Bourdieu, uma luta simbólica, inerente a realidade e responsável por delinear e
esculpir o mundo social.
Nesse sentido, Bourdieu esclarece que
o Direito, assim como a ordenação da sociedade, não está exclusivamente a
serviço dos desejos da classe dominante, como pode ser observado na posição
tomada pelos Desembargadores da Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul ao analisar um pedido de reintegração de posse.
No julgado, Plínio Formighieri e Valéria Dreyer Formighieri sustentaram que
tiveram sua propriedade invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra e buscavam, portanto, a reintegração de suas terras. Foi decidido, no
entanto, que a propriedade rural não cumpria os requisitos impostos pela Lei nº
8.629, logo, não atendia sua função social e, por isso, o pedido foi negado.
Além disso, cabe destacar que embora os proprietários tentassem usar de seu
capital simbólico – sua influência – para impedir que a posse fosse vistoriada
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a decisão
judicial fosse tomada sem essa investigação, o instrumentalismo do Direito,
assim como indicou Bourdieu, foi superado e as pressões sociais atendidas.
Assumindo uma postura distante da autonomia
impermeável e do formalismo independente do mundo social, o Direito nesse caso
se desprende da submissão a classe dominante e os magistrados, por meio da
prática jurídica, asseguram que a jurisprudência se adeque para solucionar as
questões sociais de urgência e relevância. Tal posicionamento é verificado na declaração
do Desembargador Mário José Gomes Pereira, na qual é posto a existência de: “uma
nova fase de predomínio do social sobre o individual, e neste contexto o
direito de propriedade não mais se revestiria do caráter de absoluto e
intangível de que outrora se impregnava, mas estaria sujeito a limitações
ditadas pelo interesse público e pelos princípios da justiça e do bem comum”.
Em suma, o julgado demonstra que o direito não
é somente servo do habitus e do capital simbólico de maior prestígio, ou seja,
não está a serviço exclusivo das disposições, interesses e percepções de mundo
da classe detentora de influência social e poder econômico, tampouco dos ideais
dos magistrados que o exercem. Assim como foi proposto pelo sociólogo francês,
o direito é uma ciência cuja determinação não vem puramente da vontade das
camadas dominantes, mas sim de uma luta simbólica incessante, que constitui a
realidade social a partir dos conflitos de cada classe e de cada ideal.
Giovanna Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino
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