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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Concentração fundiária e reforma agrária: o Direito como síntese da luta entre opostos

Consequência direta da exploração colonial, a concentração fundiária assola o Brasil desde a instituição das primeiras propriedades monocultoras, logo, desde o início da colonização. Essa singularidade da economia adotada no processo colonial latino-americano resultou em uma configuração socioeconômica de extremos na contemporaneidade: o agronegócio moderno disputa com a agricultura familiar em uma realidade na qual os grandes latifúndios convivem ao lado do vasto contingente de trabalhadores sem acesso à terra. Nessa conjuntura, os pequenos produtores lutam por um assentamento e pelo direito de produzir, enquanto os grandes latifundiários defendem a manutenção de suas propriedades, estabelecendo uma luta contínua de interesses antagônicos. Essa oposição é um exemplo da disputa conceituada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, uma luta simbólica, inerente a realidade e responsável por delinear e esculpir o mundo social.

            Nesse sentido, Bourdieu esclarece que o Direito, assim como a ordenação da sociedade, não está exclusivamente a serviço dos desejos da classe dominante, como pode ser observado na posição tomada pelos Desembargadores da Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ao analisar um pedido de reintegração de posse. No julgado, Plínio Formighieri e Valéria Dreyer Formighieri sustentaram que tiveram sua propriedade invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e buscavam, portanto, a reintegração de suas terras. Foi decidido, no entanto, que a propriedade rural não cumpria os requisitos impostos pela Lei nº 8.629, logo, não atendia sua função social e, por isso, o pedido foi negado. Além disso, cabe destacar que embora os proprietários tentassem usar de seu capital simbólico – sua influência – para impedir que a posse fosse vistoriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a decisão judicial fosse tomada sem essa investigação, o instrumentalismo do Direito, assim como indicou Bourdieu, foi superado e as pressões sociais atendidas.

Assumindo uma postura distante da autonomia impermeável e do formalismo independente do mundo social, o Direito nesse caso se desprende da submissão a classe dominante e os magistrados, por meio da prática jurídica, asseguram que a jurisprudência se adeque para solucionar as questões sociais de urgência e relevância. Tal posicionamento é verificado na declaração do Desembargador Mário José Gomes Pereira, na qual é posto a existência de: “uma nova fase de predomínio do social sobre o individual, e neste contexto o direito de propriedade não mais se revestiria do caráter de absoluto e intangível de que outrora se impregnava, mas estaria sujeito a limitações ditadas pelo interesse público e pelos princípios da justiça e do bem comum”.

Em suma, o julgado demonstra que o direito não é somente servo do habitus e do capital simbólico de maior prestígio, ou seja, não está a serviço exclusivo das disposições, interesses e percepções de mundo da classe detentora de influência social e poder econômico, tampouco dos ideais dos magistrados que o exercem. Assim como foi proposto pelo sociólogo francês, o direito é uma ciência cuja determinação não vem puramente da vontade das camadas dominantes, mas sim de uma luta simbólica incessante, que constitui a realidade social a partir dos conflitos de cada classe e de cada ideal.

 

Giovanna Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino

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