Existe
nas universidades brasileiras, a tradição de comemorar a entrada de novos
estudantes com o chamado “trote”, que não é exatamente um momento de pura
descontração entre calouros e veteranos, envolvendo muitas vezes “castigos”
leves que são aplicados aos recém-chegados como uma forma distorcida, mas não
necessariamente humilhante, de dar as boas-vindas. Mas no trote de medicina da
Unifran (Universidade de Franca) de 2019, as coisas extrapolaram totalmente o
que é aceitável, havendo, por parte dos veteranos, ofensas aos estudantes de
outros cursos (aos quais eles referiram como “sub-cursos”) e de outras
universidades. O mais chocante foi uma espécie de juramento que os novatos
tiveram que fazer prometendo “usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas
que tiverem oportunidade”, e as novatas prometendo “nunca recusar uma tentativa
de coito de veterano”.
O
discurso feito foi repugnante, e estava repleto de falas machistas, misóginas, sexistas
e pornográficas que estimulavam a violência sexual contra mulheres, o que fez
com que fosse movida uma ação civil pública contra o discursante (seu nome não
será mencionado). O pedido do Ministério Público era que o acusado pagasse uma
indenização no valor de 40 salários mínimos por dano moral coletivo contra
mulheres. Mas a ação foi julgada improcedente pela magistrada Dra. Adriana
Gatto Martins Bonemer, que se se utilizou de argumentos conservadores, citando
até mesmo falas e trechos de autoras feministas para atacar o movimento que ela
dá a entender subversivo, para fundamentar sua decisão, mas que não eram mais
que argumentos rasos, que não saiam do senso comum de uma sociedade machista.
O
posicionamento da juíza diante do caso, bem como a forma que ela, uma mulher
que provavelmente já sofreu algum tipo de violência por ter nascido como um
indivíduo do sexo feminino, faz críticas e ataques contra o movimento
feminista, é inesperado. No entanto, à luz dos estudos e teorias de Pierre
Bourdieu, podemos fazer uma análise do julgado e da decisão fundamentada pela
Dra. Adriana Bonemer.
Bourdieu
trazia, em suas obras, conceitos muito realistas e perceptíveis na sociedade,
como: campo, habitus, capital e poder simbólico. Todos podem ser
identificados na sentença dada, bem como em qualquer seguimento da sociedade,
no entanto, o habitus explica muito bem o porquê de uma mulher atuar de
forma contrária à causa feminista e em favor do machismo, jugando improcedente
uma manifestação clara de violência contra a mulher. E, como nenhum destes
conceitos existem de forma independente, o capital também auxiliará a análise,
e os demais estarão nela presentes.
Então,
primeiramente, uma definição genérica e pouco aprofundada desses dois conceitos
de Bourdieu: o habitus é o acúmulo de conhecimentos e crenças adquiridos
pelos indivíduos dentro de uma classe ou campo, e que fica nele impregnado como
parte de si (pode ser relacionado com o fato social de Durkheim); o capital, da
forma que foi trabalhado por Pierre Bourdieu, supera a perspectiva econômica,
sendo qualquer tipo de recurso do indivíduo, mesmo que sem valor monetário,
podendo ser, além de capital econômico, capital social e capital cultural.
Estando
inserida no campo jurídico, que é uma área majoritariamente ocupada por homens
pertencentes a uma elite econômica e intelectual, e por isso muito machista e
conservadora, a juíza Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer, provavelmente teve
que se adaptar a forma de pensar a sociedade que sua profissão exigia, o que é
o habitus. Além disso, o que pode ter contribuído para a construção da
Dra. Adriana como uma mulher machista (ou que ao menos parece ser por sua
sentença no caso analisado) é aquilo que ela adquiriu de capital social e
cultural enquanto alguém que estudou o direito e que vive com alguém de classe
privilegiada. Seu conhecimento, ou capital cultural, é de uma pessoa de classe
alta e de um meio conservador e é a essas pessoas que ela provavelmente
favorecerá em suas decisões.
A
juíza considerou improcedente a acusação por, segundo ela, o discurso não estar
direcionado a todas as mulheres, mas a apenas um grupo que o aceitou como uma
brincadeira adolescente e não se ofenderam. E adicionou que, mesmo que a fala
do médico discursante estivesse direcionada a todas as mulheres, não deveriam
ser as defensoras da causa feminista as que deveriam se ofender, já que,
aparentemente, pelo pensamento da juíza a causa busca a libertinagem, e
desvirtua a imagem das mulheres além do que o médico fez, como ela diz: “A
verdadeira identidade do movimento feminista, portanto, é de engenharia social
e subversão cultural e não de reconhecimento dos direitos civis femininos”.
Para explicitar isso, ela se utiliza de obras feministas e outras que atacam o
movimento, agindo dentro dos espaços do possível e justificando de forma a
mostrar sua “cultura” de leitora.
Para
que não fiquem dúvidas acerca do conteúdo machista e misógino do discurso
realizado durante o trote, esta foi a parte gravada em vídeo por um dos
estudantes e disponibilizada na ação:
"Eu
prometo infernizar qualquer um dos bastardos, invejosos de sub-cursos como os
da odonto e dos copiões de merda da FACEF, chupa FACEF, sem nunca dar razão a
nenhum daqueles burros, filhos da puta, desgraçados de merda! E prometo usar,
manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade,
sem nunca ligar no dia seguinte" As bixetes: Eu prometo nunca entregar meu
corpo a nenhum invejoso, burro, frouxa, filho da puta da Odonto ou da Facef.
Repudio totalmente qualquer tentativa deles se aproveitarem e me reservo
totalmente a vontade dos meus veteranos e prometo sempre atender aos seus
desejos sexuais. Compreendo que namoro não combina com faculdade e a partir de
hoje sou solteira, estou à disposição dos meus veteranos. Trecho de vídeo:
inaudível... por suas reputações, mesmo que eles sejam desprovidos de beleza ou
cheire a ovo vencido. Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa de coito
de veterano (inaudível...) mesmo que ele cheire cecê vencido e elas, a perfume
barato."
Rodrigo
Beloti de Morais
1º Ano - Noturno
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