O voto do ministro Luís Roberto Barroso, concernente às acusações de Rosemere Aparecida Ferreira e Edilson dos Santos, os quais cometeram os crimes previstos nos artigos 126( provocar aborto com o consentimento da gestante) e 128( formação de quadrilha), foi notório no sentido de elevar pautas muito importantes ao debate contemporâneo sobre a criminalização do aborto.
Os acusados em questão foram presos
em flagrante por manterem clínicas ilegais que realizavam abortos, inclusive
sendo pegos após a morte de uma jovem com pouco mais de 3 meses de gravidez,
que se propôs a realizar a interrupção forçada de sua gestação. No entanto,
embora tais atos tenham sido configurados como crimes nos pareceres da 4º
Câmara Criminal e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no entendimento
do ministro Marco Aurélio do STF, devido a sua análise do caso concreto, o habeas
corpus seria cabível, uma vez que “não
estão presentes os requisitos necessários para a decretação de prisão
preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.”. Tal decisão é
sustentada pelos bons antecedentes dos acusados, pelos mesmos possuírem
trabalho e residência fixa, pelo fato de que a condenação pode ser cumprida em
regime aberto, além da não tentativa de fuga dos pacientes durante o flagrante.
Diante desses fatos, Barroso não só
concorda com a decisão pelo habeas corpus, como também vai além ao afirmar
a necessidade de considerações a respeito da situação da mulher e dos prejuízos
referentes a criminalização do aborto na sociedade contemporânea. Nesse sentido,
o ministro afirma que “O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é
evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o
primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além
de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade.”. Apesar de
defender a não criminalização do aborto antes do findar do primeiro trimestre
de gestação, Barroso afirma categoricamente que tal procedimento deve ser
entendido como excepcional, uma vez que o mesmo é pernicioso tanto para a
integridade física como mental da mulher. Por isso, cabe ao Estado atuar em
medidas que visem a educação sexual de todos, a disseminação do uso de contraceptivos
e do amparo às mães que desejem ter filhos, mas encontram-se em casos mais frágeis
socialmente, para que, justamente, a prática do aborto seja uma medida rara e diligente.
Entretanto, mesmo que seja necessário
evitar tal prática, a sua proibição consiste em diversas restrições aos
direitos fundamentais da mulher, em desigualdade com as liberdades muitas vezes
fornecidas apenas aos homens. Como elenca Barroso, a criminalização da prática de
aborto restringe a mulher desde a supressão de sua autonomia, ou seja, de suas
escolhas concernentes ao próprio corpo; a violação da integridade física e
psíquica, uma vez que a gravidez afeta uma mulher em ambos os quesitos; a violação
dos direitos sexuais da mulher, pois a mesma encontra-se limitada em suas
decisões de manter ou não a gestação; a violação da igualdade de gênero, devido
a visão de apenas a mulher carregar o ônus da gravidez e ser obrigada a mantê-la;
além de uma clara discriminação social, uma vez que as mulheres mais pobres, as
que, por sua vez, mais sofrem com uma gravidez indesejada, são as maiores
vítimas de práticas abortivas engendradas em clínicas não especializadas e não
seguras, sendo as mais suscetíveis, consequentemente, a casos de óbitos ou
lesões.
A partir de tudo até então dito neste texto, faz-se crer que Barroso, assim como Marco Aurélio, ao decidirem pela não criminalização do aborto antes do primeiro trimestre de gestação, optam por uma postura discordante com a da maioria dos juristas brasileiros. Isso se afirma, uma vez que, majoritariamente, o corpus jurídico adota uma postura de neutralidade do direito, ao conceberem o campo jurídico como uma ciência não vinculada a nenhum outro campo. Assim como Kelsen, muitos dos juristas preferem o entendimento do direito como separado da concretude social, não levando em consideração as pressões sociais da sociedade. Bourdieu afirma, nesse sentido, que a Ciência do direito deveria se construir afastando-se do instrumentalismo, que fundamenta no direito os conceitos de seu uso como ferramenta de dominação
A teoria do habitus de Bourdieu é muito assertiva, pois demonstra que, por possuírem um mesmo passado (advirem de famílias de uma classe social abastada, e terem, consequentemente, uma educação e uma cultura mais erudita) muitos dos juristas que se formam acabam assemelhando-se em suas visões de mundo, o que denota a perspectiva conservadora e retrógrada muitas vezes evidenciada em suas decisões judiciais. Ao usar de conceitos como a autonomia do direito, ou como a atuação do jurista deve pautar-se dentro do “espaço dos possíveis”, o jurista está verdadeiramente blindando-se da realidade circundante, decidindo apenas conforme suas próprias vontades, vontades essas similares a de outros partícipes do direito que compartilham do mesmo ethos dominante no campo jurídico.
Os positivistas, ao atribuírem ao direito uma racionalidade pura, notadamente prevista na teoria pura do direito muitas vezes utilizada pelos mesmos, estão, na realidade, dando abertura a todo e qualquer tipo de decisão arbitrária dos magistrados, visto que a rigorosidade das normas jurídicas legisladas não atendem, na maioria das vezes, ao caso concreto. É nesse contexto que Kelsen afirma que “a decisão judicial provém de um ato de vontade”, o que demonstra, por sua vez, a visão dominante do magistrado atuando em suas decisões judiciais. Percebe-se que a racionalização da ciência jurídica, que fomenta, por sua vez, o rigorismo das normas e a tecnicidade da linguagem jurídica, servem muito mais como instrumentos de legitimação da discricionariedade dos juristas, do que formas de se estabelecer, mediante uma lógica racional, maneiras de se ordenar a sociedade, atendendo aos anseios populares e remediando os males existentes na realidade social.
A teoria pura do direito é, para Bourdieu, uma ficção, uma vez que na realidade o ethos dos juristas influenciam vigorosamente nas suas criações jurídicas, assim como atuam na tendência das decisões dos magistrados referentes ao caso concreto. Portanto, a moral, no caso aquela característica das classes dominantes, influi no direito, mesmo que mascarada por uma suposta neutralidade, concretizada apenas pro forma.
Ao se debruçar nas análises de Bourdieu, e tendo em vista a posição conservadora brasileira em relação a criminalização do aborto, vê-se que as decisões de ambos os ministros vai de encontro a visão dominante dos juristas, uma vez que se pautam numa visão preocupada com as restrições históricas perpetradas aos direitos fundamentais femininos, além de possuir embasamento em outros campos que não seja apenas o jurídico, como o moral (Barroso inclusive cita Robert Alexy, grande representante do moralismo jurídico), apesar de se validar principalmente usando dos preceitos constitucionais e de teorias e argumentos notadamente jurídicos.
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