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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A pretensão unívoca da ciência jurídica masculina e cisgênera à luz dos pensamento de bourdieu

Um julgamento realizado pela 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ- SP), em 21 de abril de 2021, declarou a não possibilidade de proteção à Luana Emannuella Simões Fernandes, uma mulher transgênero, por meio da Lei Maria da Penha, contra seu genitor, Luiz Antônio da Silva Fernandes. De acordo com a ementa, o requerimento realizado pelo Ministério Público de medidas protetivas à Luana foi recusado em razão da impossibilidade de equiparar “transexual feminino = mulher”. Ainda se alegou a possibilidade de ofensa aos direitos humanos, caso fosse concedida a mencionada proteção, como o (a) direito de não sofrer privação arbitrária à liberdade, o (b) direito a julgamento justo, o (c) direito a tratamento humano durante a detenção e (d) direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. 

À luz do pensador Pierre Bourdieu, nota-se a possibilidade de análise sociológica acerca desse julgado. Com uma afirmação de cunho algébrico feita pelo relator Francisco Bruno de que “transexual masculino = homem” e reiteradas declarações acerca da não possibilidade científica de diferenciação entre categorias como gênero e sexo, é perceptível a expressão da racionalização no que se menciona, um habitus relativo ao universo jurídico. De acordo com Bourdieu, a busca pela construção de uma neutralização e universalização são traços do que se racionaliza no Direito, sendo a primeira dada a partir de elaborações até mesmo sintáticas com cunho impessoal e a segunda realizada por meio da afirmação de certezas jurídicas. Dessa maneira, é possível observar a tentativa, por parte do relator, de recorrer a uma ideia de imparcialidade determinada no julgamento, em razão da única possibilidade de caráter científico realizada por seu posicionamento. A expressão algébrica dada entre categorias sociais e a rejeição a outras formas de pensar a ciência que não sejam unicamente observadas pela perspectiva de alusão à biologia e a cromossomos “XX” e “XY”, como feito no julgado, é ilustrativa da omissão à validade de outras leituras sociais da ciência que não sejam a aqui analisada, em busca de tratá-la como unívoca, neutra e universal.  

Assim, quando o relator não menciona fatos como a declaração da OMS (Organização Mundial da Saúde) na CID-11 (Classificação Internacional de Doenças- 11), em maio de 2019, a respeito da transgeneridade ser considerada uma “incongruência de gênero” e não doença, ou seja, uma não equiparação subjetiva entre sexo e gênero que deve ser respeitada para promover a saúde de pessoas trans, ele mostra a tendência na sua visão do que é ou não científico, mesmo que com a pretensão de aludir a uma possível neutralidade em seu posicionamento. Para reafirmar a possibilidade científica no respeito ao gênero como autodeclaratório, nota-se a Resolução Nº1 do Conselho Federal de Psicologia, em 29 de janeiro de 2018identidade de gênero refere-se à experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo e outras expressões de gênero” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018). Logo, a afirmação do relator de que tal posicionamento é apenas “politicamente correto” e não atrelado à ciência reduz a relevância de instituições reconhecidas nacionalmente e internacionalmente nesse âmbito ao que se definiu como uma desvalorização da biologia.  

Ademais, quando o relator Francisco Bruno afirmou que somente mulheres podem reconhecer e definir o que é sê-lo (o que, para ele, exclui a comunidade transfeminina), percebe-se a contradição presente na assertiva, que é realizada por um homem, com o intento de definir o que é ser mulher (mesmo que para ele somente alguém dessa categoria possa fazê-lo). Dessa maneira, o recurso à argumentação de que apenas a equiparação entre sexo e gênero é uma acepção científica; a utilização de equações entre palavras para conceituar categorias sociais como “homem” e “transexual”; além da afirmativa de que um julgamento justo (b) perpassa necessariamente pela recusa à proteção de Luana demonstram tal processo de racionalização jurídica. Tais ferramentas podem ser lidas, pelo pensamento de Bourdieu, como formas de minimizar ou apagar as disputas simbólicas em campos sociais como o jurídico e também como o do fazer científico, ocultando tal luta de perspectivas e engendrando ciência e moral como pilares para o Direito (essas determinadas também por lutas e dominações simbólicas de grupos com poder social, como o masculino).

A pensadora Judith Butler (2017 apud OLEA, 2018), buscou definir o falocentrismo como instituidor de categorias na sociedade, as de gênero e sexualidade. A partir disso, ela desenvolve a perspectiva de uma não compatibilidade entre sexo biológico e gênero e, nesse sentido, pode-se pensar em reguladores sociais como o machismo, que restitui constantemente ao lugar social de centralidade tudo o que é masculino, em virtude do falocentrismo. Dessa maneira, a centralização da visão masculina e também cisgênera no Direito pode ser observada nesse julgadcomo uma forma de dominação simbólica que oculta outras definições do que é ser mulher que não sejam dadas por um olhar (pessoalmente vindo de um homem) com pretensões de afirmar-se universal, neutro ou estritamente científico. Nesse sentido, Bourdieu é útil para demonstrar como tal processo de racionalização é também estratégico na reafirmação de violências simbólicas, como o próprio falocentrismo e as noções por ele concebidas, as quais tem o intento de se demonstrarem imparciais e unívocas, para omitir as disputas presentes no Direito e na sociedade. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP. Recurso em Sentido Estrito: RSE 1500028-93.2021.8.26.0312 SP - Inteiro Teor. Relator: Francisco Bruno. 10ª Câmara de Direito Criminal. 27 abr. 2021. Disponível em: < https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1207888642/recurso-em-sentido-estrito-rse-15000289320218260312-sp-1500028-9320218260312/inteiro-teor-1207888645>.   

 

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. RESOLUÇÃO Nº 1, DE 29 DE JANEIRO DE 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf> 

 

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação Internacional de Doenças- 11 (CID-11). Maio de 2021. Disponível em: <https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f411470068>.  

 

OLEA, Thais Campos. Corpos que choram, corpos que lutam: as fronteiras do gênero e o processo de generificação compulsória do discurso jurídico. Dissertação (Mestrado em Direito e Justiça Social) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande, p. 109, 2018. Disponível em: < http://repositorio.furg.br/handle/1/9635>.  



-Letícia Magalhães, Noturno.

  

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