Pierre Bourdieu, importante sociólogo contemporâneo, em suas obras de cunho estruturalista, demonstra como as disposições e relações sociais impactam na vida privada de cada indivíduo. Ou seja, partindo da historicização daquilo que é considerado natural, evidencia-se, em sua investigação, que algumas atitudes e estruturas de pensamento, consideradas inerentes aos indivíduos, são passíveis de indagação e estudo. Nesse contexto, Bourdieu elabora três conceitos de suma importância no desenvolvimento de sua teoria: Capital simbólico, Habitus e Campo.
O capital, em seu sentido mais amplo, refere-se aos recursos que alguém detém e que sustentam privilégios a tal indivíduo em relação aos outros que não o possuem. Já o Capital simbólico — base da violência simbólica — consiste num complexo de práticas, protocolos e formalidades diretamente relacionados ao reconhecimento e, principalmente, à honra. Sendo assim, tal mecanismo permite a legitimidade da posse dos três outros tipos de capitais — econômico, cultural e social —, ou seja, fornece um poder simbólico ao agente.
Como articulação das categorias de capitais, tem-se o Habitus, sendo este a materialização das disposições sociais e responsável pela interiorização de valores num indivíduo para, assim, ele poder conviver no grupo através de um estilo de vida condizente com a sua classe. Ou seja, consiste em valores e hábitos que vão passando pelas gerações e grupos de interação, isto é, não corresponde efetivamente a uma escolha, e sim uma influência externa ao indivíduo. Nesse sentido, nota-se que tal tradição perene fomenta o estabelecimento de hierarquias e a manutenção de privilégios de certos grupos.
Ademais, conceitua-se o campo como o local onde acontecem as lutas de poder na sociedade, fomentando o estabelecimento de posições sociais de dominância para certos grupos — o que mostra sua relação direta com o capital. Além dessa dinâmica concorrencial, cada campo apresenta regras particulares, sendo assim, nota-se o papel do Habitus nesse contexto, visto que este baseia a forma como se aprende tais normas.
Sob esse prisma, é possível analisar o fato ocorrido na UNIFRAN, no qual, um ex-aluno, durante o conhecido “trote”, fez com que calouras e calouros do curso de medicina executassem um “hino” de caráter machista e misógino, retratando uma nítida ofensa e opressão ao sexo feminino. Durante tal “juramento”, pode-se notar a nítida apologia ao estupro como, por exemplo: “prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade, sem nunca ligar no dia seguinte” e mais claramente em “Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa de coito de veterano”. Nesse sentido, utilizando-se dos conceitos de Bourdieu supracitados, é perceptível a violência simbólica presente em tal ocorrido, bem como seus efeitos positivos à dominação masculina.
Entende-se por violência simbólica a imposição de certas significações, sendo estas tidas como “legítimas”, que geram uma agressão abstrata — mas que podem validar e basear violências na prática —, tendo em vista que é caracterizada por ações já inseridas em nossas categorias de entendimento, ou seja, são consideradas naturais. Ou seja, tal violência é uma forma de demonstrar como certas autoridades, bem como seus poderes são naturalizados, fazendo com que haja uma aceitação dos grupos dominados, não de uma maneira consciente, mas sim de forma submissa e pouco racionalizada. Dessa forma, entende-se a dominação masculina como uma forma específica de violência simbólica e que afeta as mulheres até os dias de hoje.
Nesse contexto, o caso do trote na UNIFRAN é um caso explícito de violência simbólica e que, apesar de não gerar danos físicos, é responsável pela manutenção de uma sociedade desigual, sexista, misógina e violenta para as mulheres.
Ademais, cabe ressaltar que, como tal violência é naturalizada e, muitas vezes, imperceptível — já que faz parte das condutas quase automáticas dos indivíduos —, o Habitus tem grande importância em seu fortalecimento. Como o Habitus consiste na concretização de valores passados aos indivíduos por meio do grupo em que se relacionam — como família, amigos e escola —, nota-se o papel importantíssimo de certas instituições e, majoritariamente, daquelas referentes ao ensino. Nesse sentido, sabe-se que o machismo é uma das principais características da sociedade e, por consequência, está inserido em cada capilar desse grande organismo, ou seja, torna-se estrutural. Devido a essa característica, os indivíduos são formados em instituições educacionais fundadas em preceitos de violência de gênero e desigualdade, o que legitima e naturaliza comportamentos como aquele notado no trote.
À vista disso, apesar da ação movida pelo Ministério Público contra Matheus Gabriel Braia — sendo que este contestou, utilizando argumentos rasos e também de caráter machista, como o fato de ter amigas e irmã presentes no trote e que tal ato é cultural nas universidades —, o juiz considerou a ação improcedente, visto que, segundo tal agente da lei, “a responsabilidade civil demanda dolo ou culpa, dano e nexo causal, os quais estão ausentes no presente caso”. Ou seja, embora seja um caso de violência simbólica explícita e que poderia acarretar numa violência prática, o próprio Direito, como instituição social, não reconheceu a imposição, na verdade, ilegítima e agressiva às mulheres. Sendo assim, percebe-se nesse julgado a forma como a sociedade lida com certas hierarquias e disposições de poder, as aceitando, muitas vezes, passivamente devido à tradição e ao Habitus, bem como pelas violências imperceptíveis que geram desigualdades e agressões maiores.
Larissa de Sá Hisnauer — 2º semestre — Diurno
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