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domingo, 29 de setembro de 2019

Homotransfobia perante a expansão da máquina do Judiciário


          A homofobia caracteriza-se como qualquer ato de ódio, desprezo ou repulsa contra algum indivíduo por virtude de sua orientação sexual, enquanto a transfobia é o mesmo tipo de ação voltada contra travestis e transexuais, ambos caracterizando-se como um grave problema na contemporaneidade, não só do Brasil, como em vários países ao redor do mundo. Diversas organizações e indivíduos têm buscado maneiras de enfrentar este problema.

          O Brasil possui um número alarmante de casos de homotransfobia, indo desde incitações de ódio e destilações de preconceito até agressões físicas, torturas e assassinatos. Por conta destes fatos, o Supremo Tribunal Federal julgou durante três meses, tendo seu término em junho de 2019, a possibilidade de enquadrar o crime de homofobia dentro da lei 7716/89, conhecida como Lei do Racismo, que tipifica crimes de discriminação por conta de raça, etnia, cor, religião ou procedência nacional como passiveis de punição, além de inafiançáveis e imprescritíveis.

          Tendo em vista o fato dessa decisão de grande importância estar sendo tomada pela Suprema Corte do Brasil, este fenômeno pode ser encarado como parte da expansão do poder dos tribunais e um maior protagonismo do direito e do Poder Judiciário. O autor Michael McCann, em seu artigo “Poder Judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos usuários”, institui alguns conceitos, além de trazer para o debate ideias de outros autores e pensadores, que podem ser de grande auxilio para uma visão amplificada desse fenômeno, assim como suas causas e consequências.

          Destarte, é necessário observar que as populações pertencentes à comunidade LGBTQI+ sofrem constantemente por ataques na mídia, preconceitos, repulsas advindas da família e de outras pessoas inseridas em seu circulo social, e várias vezes esses sentimentos acabam por traduzir-se em manifestações de agressividade. A estrutura heteronormativa presente na sociedade também faz com que esses indivíduos sejam excluídos, marginalizados e tidos como anormais por não seguirem formas padronizadas de sexualidade e gênero.

          Essa exclusão faz com que muitas vezes essas pessoas venham a desenvolver graves problemas psicológicos, como é o caso da depressão, e, em casos mais extremos, vir a cometer suicídio. Essa conjuntura desfavorável em que a sociedade coloca esses grupos faz com que os mesmos fiquem extremamente vulneráveis, necessitando de uma maior proteção por parte do poder público para ter seus direitos assegurados, fazendo-se necessário que as condutas que ameacem estas populações sejam enquadradas na ilegalidade.

          Cesare Beccaria, autor italiano do século XVIII, institui que as penas e punições possuem um caráter de prevenção da ocorrência de determinados delitos, através dos exemplos que elas exercem perante os demais indivíduos, demonstrando que certas condutas são inaceitáveis e passiveis de alguma forma de sanção. A institucionalização de penas contra crimes de homotransfobia seria uma forma eficaz de diminuir estas ações, pelo caráter exemplar que iria exercer sobre as pessoas, gerando um desincentivo à prática destas agressões.

          O fato de organizações em prol dos direitos dos gays, lésbicas e transexuais buscarem o Direito como um meio para realizar seus interesses de uma maior segurança e da proteção de seus direitos à dignidade, respeito e felicidade, entre outros, há de ser vista como uma manifestação da mobilização do direito, conceito de Michael McCann, que coloca que a mobilização do direito como sendo o fenômeno de algum grupo buscando a realização de seus interesses e valores através do meio jurídico.

          Fran Zemans, autor citado por Michael McCann em seu artigo, conceitua que a mobilização do direito é uma importante forma de democracia, sendo a disputa judicial tão importante para isto quanto o voto. Os tribunais são importantes enquanto órgãos de fiscalização das instituições democráticas, atuando em várias áreas onde os demais poderes públicos se omitem, sendo a mobilização do direito uma forma de direcionar esta fiscalização.

          Há de se ver ainda que essa parcela da sociedade, enquanto realiza a exigência de seus direitos, acaba por gerar uma demanda constantemente expansiva de ações judiciais. Essas demandas são organizadas pela advocacia e os tribunais encontram-se como os únicos legitimados para decidir sobre tais demandas, o que gera, consequentemente, um aumento razoável do poder destas instituições, por meio de uma “revolução de baixo pra cima”. Esta concepção é conhecida como Argumento da demanda, tratada na obra The Rights Revolution, de Charles Epp, outro autor citado por McCann, onde o poder dos tribunais é expandido em decorrência da demanda por direitos por uma parte da sociedade. A ação acerca da criminalização da homofobia enquadra-se nesta concepção, em decorrência de ser uma demanda advinda de uma parcela da população, no caso, organizações e grupos pró-direitos da comunidade LGBTQI+, que tomou proporções na esfera jurídica.

          Muitos criticam o fato desta matéria estar sendo discutido e decidido pela Suprema Corte, ao invés do Congresso Nacional. Várias pessoas alegam que isto é uma manifestação do Poder Judiciário invadindo a competência de outro poder, cometendo uma grave afronta ao regimento jurídico e democrático do Brasil. O professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Carlos Blanco de Morais, no VI Fórum Jurídico de Lisboa, comentou acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal: “O STF veio engrandecendo seus poderes a muito tempo, sendo o tribunal constitucional mais poderoso do mundo”.

          Entretanto, há de se salientar que o Poder Legislativo tem apresentado uma enorme resistência em colocar este tipo de matéria em pauta, dando proteção especial para alguns grupos mais vulneráveis, como minorias étnicas, religiosas e estrangeiras, mas não oferecendo esta mesma proteção para gays, lésbicas e transexuais, por exemplo, cabendo ao Direito assegurar a materialidade dos direitos destes indivíduos. Embora não seja o cenário ideal, acaba se fazendo necessário em decorrência da morosidade do Parlamento quanto a esta matéria.

          A mobilização do direito pode ter diversas manifestações enquanto for uma atividade em curso da sociedade, sendo uma delas a partir de um nível estratégico, onde as ações judiciais e o contexto modificam as estratégias que os indivíduos se utilizam para aplicar suas ações judiciais. A mutação constitucional ocorrida em 1988 passou a incentivar a ação judicial, assim como permitir maior acesso para as mesmas, modificando as estratégias que grupos como os supracitados LGBTQI+ utilizam para fazer suas demandas.

          A primeira turma do STF aprovou a tipificação do crime de homotransfobia na Lei de Racismo. Diante dos argumentos supracitados, foi um grande avanço, sendo um primeiro passo para podermos modificar a conjuntura social em que estamos inseridos, procurando transforma-la para um estado mais tolerando para as diferentes manifestações de pessoas na sociedade.

João Lucas Albuquerque Vieira
Unesp - Campus Franca
Direito Matutino

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