Em setembro, ocorreu na cidade do
Rio de Janeiro um dos maiores eventos de livros do país, a Bienal do Livro.
Nessa edição o prefeito Marcelo Crivella censurou um dos livros em exposição,
“Vingadores: a cruzada das crianças”, pedindo para que os exemplares fossem
recolhidos, pois em seu conteúdo havia imagem que ilustrava um beijo entre dois
personagens do sexo masculino.
Diariamente, há diversos casos de
censura de cunho homofóbico, como esse. Aliás, não apenas de censura, mas de violência
física e psicológica contra a comunidade LGBTQI+, principalmente aos
homossexuais e transexuais, por serem quem são ou pela demonstração de afeto
que foge do padrão heteronormativo.
Essa ação do prefeito da cidade
do Rio de Janeiro demonstra um grande retrocesso da sociedade; e não obstante, os
dados de violência contra a comunidade, são assustadores. A média brasileira,
como aponta o site de notícias do G1, é de uma morte por homofobia a cada 23
horas.
Entretanto, concomitantemente,
cresce também o número de movimentos de apoio à causa LGBT no Brasil e no
mundo, aumentando a visibilidade da causa; e é inegável que já houveram
progressos consideráveis no âmbito jurídico, em relação aos direitos dessa
população minoritária.
Um grande passo dado pela justiça
brasileira em prol da comunidade LGBT foi enquadrar a homofobia e a transfobia
com a tipificação penal do racismo, previsto na lei 7.716/1989. A Ação Direta
de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 impenetrada pelo Deputado
Federal Roberto João Pereira Freire, e o Mandado de Injunção (MI) nº 4733 foram
analisadas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, e a conclusão do julgamento
ocorreu em junho desse ano.
A ADO teve como relator o
Ministro Celso de Mello, além da participação de diversos amicus curiae, entre eles, o Grupo Gay da Bahia (GGB). Por maioria,
a decisão da Corte foi de reconhecimento da mora do Congresso Nacional para
incriminar atos que atentem os direitos fundamentais de integrantes da
comunidade LGBT.
Essa conquista para esse grupo
minoritário, iniciada por um ente que exerce representação popular, demonstra a
ocorrência do conceito de mobilização do Direito, do autor Michael McCann presente
em “Poder Judiciário e mobilização do Direito: uma perspectiva dos ‘usuários’”.
O voto do Ministro Ricardo Lewandowski
levantou os argumentos apresentados pelo requerente, explicando que o pedido busca
“obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e
transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e
coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela
orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”.
Esse argumento pautou-se no artigo
5º da Constituição Federal de 1988, postulando-se essencialmente na questão de
que a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito ontológico-constitucional
de racismo, ou que deveriam, subsidiariamente, serem entendidas como discriminações
atentatórias a direitos e liberdades fundamentais.
No requerimento ainda, foram solicitadas
a fixação de responsabilidade para o Estado, de indenização às vítimas de todas
as formas de homofobia e transfobia, incluindo os casos que precederam o
reconhecimento da mora legislativa.
Entretanto, as pautas
apresentadas obtiveram reconhecimento parcial, classificando o “pedido de condenação do
Estado em indenizar vítimas de homofobia e transfobia, em virtude de
descumprimento do dever de legislar”, como inadmissível.
Ainda, caso não houvesse o entendimento de que a lei
7.716/89 tipifica práticas homofóbicas, haveria mora constitucional por inobservância
dos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição, devendo haver uma fixação
de prazo para que o Poder Legislativo sanasse a omissão legislativa.
O Ministro ainda irá dissertar acerca da reivindicação
pela igualdade de grupos minoritários e de direitos humanos em todo o mundo,
afirmando que
“Esses grupos, por serem minoritários
e, não raro, vítimas de preconceito e violência, demandam especial proteção do
Estado. Nesse sentido, a criminalização de condutas discriminatórias não é só
um passo importante, mas também obrigatório, eis que a Constituição contém
claro mandado de criminalização neste sentido: conforme o art. 5º, XLI, ‘a lei
punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais’”.
Considerando esse conjunto, é
possível relacionar o processo às ideias de McCann, que classifica a
mobilização do Direito como a busca da realização dos interesses e valores por
meio de ações de indivíduos, grupos ou organizações. A tese do autor visa deslocar
o foco dos tribunais para os usuários, utilizando o direito como um recurso de
interação política e social.
Dentro disso, os tribunais para McCann
é um “ator nos complexos circuitos de disputas políticas”. A nível instrumental
e estratégico, a mobilização busca a análise de como as ações judiciais
configuram o contexto estratégico dos outros atores do Estado e da sociedade.
Essa análise em muito se relaciona
com o argumento do Ministro Lewandowski de que “os grupos sistematicamente excluídos de direitos têm,
outrossim, mais facilidade para alcançar seus objetivos estratégicos por meio
do Poder Judiciário, cujo acesso é mais simples e menos custoso do que o acesso
ao Legislativo e ao Executivo”; e também com o Mandato de Injunção supracitado,
expedido pelo poder Judiciário.
Além disso, a participação dos amicus curiae e o fato da questão da homofobia
e transfobia terem chegado ao tribunal, demonstra que a atuação do mesmo exerce
função de catalizador da ação político-social, efetuando um aumento da
relevância da questão na agenda pública; o privilégio de algumas partes
demonstrar interesse na questão e a criação de oportunidades para que essas
partes, como fez o GGB e o Conselho Federal de Psicologia, se mobilizasse em
torno da causa.
Ademais, por conta de a questão ter
chegado no tribunal, há também ações de contramobilização por uma parcela da
sociedade com ideais conservadores, como é possível ver no caso da Bienal do Livro.
Enfim, McCann ainda afirmará que “os tribunais
podem exercer papéis importantes em mobilizar os cidadãos enquanto atores e
conectá-los a uma vida cívica engajada”, e que “se
os tribunais contribuem tanto para a justiça social quanto para a justiça
formal, se os processos judiciais aumentam a equidade e limitam a hierarquia,
eles podem ser coerentes com a democracia”.
Para
Franz Zemans, autor citado por McCann, a mobilização do direito é uma forma clássica
de atividade democrática; “a disputa judicial entre os cidadãos é um sinal de
democracia tanto quanto o voto”.
Observando
isso, dentro do contexto brasileiro, o autor irá comentar que a reforma
constitutiva permitiu uma maior participação dos grupos e de instituições na
busca pelo cumprimento da Constituição de 1988, e isso provoca demandas vindas
das camadas marginalizadas e uma “cultura jurídica que valoriza as partes mais
vulneráveis”.
Todavia,
esse sistema oprime o Judiciário exercendo uma diminuição em sua capacidade de
responder efetivamente. O resultado é um grande número de demandas, com longos
períodos de atraso na resolução dos conflitos.
Ainda
assim, a via do Judiciário é mais simples para a resolução de conflitos, pois por
conta de toda a burocracia envolta do Poder Legislativo, a espera por uma autoridade
competente que demonstre interesse em pautas sociais e queira reivindicá-las seria
maior.
Por
fim, é possível concluir que o fenômeno da mobilização do Direito na sociedade
contemporânea auxilia na busca pela efetivação dos direitos fundamentais da
parcela marginalizada da população, como dos LGBTQI+, e também no dinamismo do
Direito quanto ao acompanhamento das viradas axiológicas.
Toda
a ideia de McCann demonstra ferramentas para o bom funcionamento de uma democracia
e isso concretiza aquilo que em tese é a finalidade do Estado Democrático de
Direito: a garantia do Bem Comum; formulada pelo Papa João Paulo como o “conjunto
de todas as condições de vida social que consistam e favoreçam o
desenvolvimento integral da personalidade humana".
Daiana Li Zhao - Direito Matutino - 1º ano
Nenhum comentário:
Postar um comentário