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domingo, 29 de setembro de 2019

Tribunais: o dilema entre o agir e o não agir

Como a brilhante Provedora de Justiça de Portugal, Professora Maria Lúcia Amaral citou em sua participação no XXVIII Encontro Nacional de Direito Constitucional (19/09/19), quanto maior a disparidade política em um país, mais se recorre ao Judiciário, como se este fosse o responsável por, nas suas palavras, “cauterizar” a ferida que a discussão política não consegue curar. A fala da Magistrada abre majestosamente a discussão desta semana, na qual abordaremos os autores Michael W. McCann, Madalena Duarte e o recente caso da Criminalização da Homofobia por parte do Supremo Tribunal Federal brasileiro (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF). 
Para McCann, de 1950 para cá, “os tribunais vêm exercendo um papel cada vez mais importante na política nacional e internacional em todo o mundo” (p. 175). Notamos essa constatação na realidade brasileira quando pomo-nos diante das diversas e recentes decisões dos Tribunais - em maioria do STF - que acabam por cada vez mais entrar na esfera de assuntos políticos e socialmente polêmicos e ambíguos. Consonante com a Profª Maria Lucia, notamos no Brasil dos últimos anos uma crescente polarização política (direita X esquerda, à exemplo), em simultâneo à um crescente processo de judicialização de causas que - formalmente - deveriam ser objeto de discussão político legislativa. Para a Profª, os dois eventos apresentam certa relação de causa e consequência, uma vez que o primeiro (polarização) age como empecilho à discussão política, fazendo com que cada vez mais se recorra ao Judiciário para “cauterizar”, tratar essa ferida aberta pela inação política. Notemos que esta inação consta expressa da própria titularidade da Ação, chamada de “Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão” , ou seja, a própria tipologia da Ação reflete que esta decorre de um certo processo de inércia por parte das autoridades competentes (Congresso Nacional, conforme a petição). McCann não fica longe deste raciocínio, indo inclusive além em sua obra ao citar a “Teoria da Segurança Política”, de Ginsburg, onde denota-se a ideia de que em alguns casos essa “inércia” política e legislativa pode ser dolosa: num sentido eleitoral de resguardar interesses, algumas elites políticas agem estrategicamente de forma a evitar tocar em certos assuntos “tabus” para que, ao não tratar desses assuntos e delegá-los ao Judiciário, proteger seus interesses perante maiorias eleitorais futuras (p. 178). É como se dissessemos que as elites políticas dolosamente se omitem pois, diante do cenário polarizado, tomar partido em um dos lados da discussão as compromete eleitoralmente com o eleitorado adepto do lado contrário.
 No caso em tela podemos aplicar esse exemplo: se houvesse realmente uma efetiva discussão político-legislativa no intuito de criminalizar a prática da homofobia, muitos dos setores mais conservadores da sociedade se oporiam, como assim o fizeram inclusive como amicus curiae. Consequentemente, aqueles que estariam litigando favoravelmente se comprometeriam eleitoralmente com toda essa fatia conservadora da sociedade que - curiosamente - parece insistir em não concordar com a criminalização. Consonante, McCann afirma que “os políticos frequentemente se apoiam nos tribunais para lidar com questões controvertidas” (p. 179)
    Conforme à essa altura já percebemos, a discussão em torno da Criminalização da Homofobia foi palco de diversas opiniões e correntes ambíguas. A parte autora da Ação requereu a Criminalização de “todas as formas de homofobia e transfobia, [...] ofensas, agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero”. A argumentação também pediu pela responsabilização do Congresso Nacional por uma mora (sinônimo de impontualidade para o cumprimento de uma obrigação, segundo GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri) no sentido de que o referido Órgão deveria há muito ter trabalhado pela Criminalização. Para uns, como o Presidente do Senado,  a medida se faz desnecessária por já se fazer presentes dispositivos legais que protegeriam o bem jurídico reivindicado, como a proteção à honra, a criminalização do homicídio, dentre outras. Ainda de acordo com ele, deveria haver uma cobrança no sentido da aplicação das leis já existentes, não uma cobrança que demandasse um processo legiferante desnecessário. 
    Destaco, dentre todo o arcabouço jurídico da presente ação, um ponto que muito me chamou atenção por tão bem dialogar com o conteúdo trabalhado. Quando de se voto, o Ministro Lewandovski citou o processo de Judicialização aqui trabalhado, através do autor Ran Hirschi. Segundo este, “os tribunais tornaram-se instituições sensíveis aos reclamos de grupos sistematicamente excluídos da esfera política, contando com o apoio - explícito ou implícito - dos atores políticos, os quais, ao transferir sua responsabilidade para as instituições judiciais, evitam sua responsabilização política por decisões impopulares” (p. 9 doc “c”). A citação é perfeita à discussão, por trazer assim como McCann a ideia de que a “omissão” dos atores políticos na verdade se da por interesse político de não se comprometer com determinados grupos eleitorais, ideia da qual pessoalmente também sou adepto. Retornemos à fala da Profª Maria Lúcia Amaral: se nos encontramos dentro de um contexto tão polarizado, donde se vê brigas e términos de amizades de anos por posicionamentos políticos, evidente concluirmos que para os membros do Legislativo há um risco eleitoral imenso ao debaterem - e consequentemente se posicionarem em - temas tão polêmicos e tão controversos. Por conseguinte, concluímos que o processo de Judicialização - cauterização da ferida - e essa situação de omissão fazem parte de uma “estratégia política” que diante do cenário polarizado se faz necessário às elites para sobrevivência eleitoral. Infelizmente, neste, perdem as minorias e aqueles que precisam da efetiva ação do Legislativo. 
    Até aqui, vimos possíveis e bem fundamentadas razões e explicações ao processo de Judicialização, destacando fatores como a polarização política, a estratégia das elites políticas (chamada de Teoria da Segurança Política), e a consequente delegação - intencional - de atribuições do Legislativo ao Judiciário  motivada pelo objetivo de, ao evitar temas impopulares, manter uma segurança eleitoral. Analisemos, doravante, a situação por parte do Judiciário. 
    Para Madalena Duarte, toda a situação narrada e vista neste e em outros julgados durante a disciplina põe o Judiciário diante de um impasse: permanecer-se inerte e independente, mas irrelevante socialmente, ou agir e atuar no âmbito da “inconstitucionalidade por omissão’’ (DUARTE, Madalena, 2011. p. 23). A autora de forma breve caracteriza como é difícil para o Judiciário medir e saber até que ponto deve permanecer-se inerte e até que ponto deve, sob pena de se tornar inútil, agir. Ainda falando sobre a autora, outro aspecto muito interessante que ela traz é o de que o processo de Judicialização como no presente caso pode resultar de um descontentamento com a modernidade. Viu-se nascer diversas promessas de igualdade entre os homens, proteção e tutela às garantias individuais, sendo um marco brasileiro disso a própria Constituição de 1988, tida como a “cidadã”. Há de se concluir que diante de todo esse processo nasce nos cidadãos uma expectativa imensa de que serão objeto de atenção política e de extrema proteção, que, contudo, não vem. Surge então a demanda de ativar a “função tutelar” do Judiciário, e reivindicar as promessas feitas pela Democracia que não foram cumpridas pelas vias convencionais. Nesse sentido, McCann inclusive levanta a possibilidade de haver relação entre a atividade em “papéis importantes’’ dos Tribunais com o contexto de transição de regimes autoritários para democracia (p. 179), contexto no qual podemos nos inserir tendo em vista que, quando comparada à democracias como a estadunidense, a nossa não apresenta período estável e duradouro, podendo ser enquadrada como estando em processo de consolidação.  Para Duarte, esse processo de descontentamento com a modernidade começa logo na virada do Século XIX para o XX, quando “começa já a notar-se alguma contestação social face às promessas não cumpridas da modernidade” (p.22). 
    Notamos que o processo de Judicialização é extremamente complexo, e que, embora havendo correntes extremamente embasadas acerca de suas causas e efeitos, como as que trouxemos à discussão, não há consenso se o processo é nocivo, prejudicial, arriscado, ou necessário, positivo e benéfico ao avanço jurídico-social. Encerrando, resgato Bourdieu e seu “espaço do possível” para concluir que deve-se sopesar os extremos (agir/não agir) dos Tribunais com fulcro justamente no que é possível. No presente caso, foi possível criminalizar a homofobia, tendo em vista inclusive os argumentos contrários de que já haviam diversos institutos legais similares (ora, se já há então não está se fazendo uma mudança tão radical). Assim, o Judiciário apenas aplicou o filtro do Espaço do Possível e estendeu a criminalização expressamente à Homofobia. Mesmo havendo argumentos inclusive pautados na falha da política de encarceramento, entendo que o processo de Judicialização, conforme discuti, vem a calhar como medida de substituição de um legislar que, por ser dolosamente ignorado, demanda para proteção das garantias individuais o agir dos Tribunais, que, caso não hajam em casos tão necessários - visto as estatística de crimes motivados por homofobia e afins -, correm o risco de se tornarem socialmente irrelevantes, conforme Madalena Duarte. 

Adelino Mattos Marshal Neto.
1° Direito Matutino - Turma XXXVI

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