A
criminalização da LGBTfobia, realizada pelo Supremo Tribunal Federal no
primeiro semestre de 2019, foi responsável por reviver uma discussão inerente
ao mundo contemporâneo, tanto na realidade brasileira quanto em outros Estados:
o processo de judicialização da política, sua validade e seus efeitos.
A
ADO (Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão) nº 26 do Distrito
Federal foi ajuizada pelo Partido Popular Social (PPS) contra o Congresso
Nacional, alegando uma demora excessiva por parte desse para tipificar a
homofobia, sendo o termo mais correto LBGTfobia, como um agravo da agressão ou
homicídio, constituindo um novo crime. Esse mecanismo, semelhante ao que acorre
ao utilizarmos a denominação “feminicídio”, atuaria como um ato simbólico da
utilização do Código Penal para afirmar a importância da população LBGT+. Em
uma decisão anterior, foi fixado um prazo para que as casas legislativas
editassem diretrizes específicas para a criminalização. Com o esgotamento desse
prazo e a falta de ação dos legisladores, a ação voltou a correr e o STF tomou
a decisão de incluir a LBGTfobia dentro do rol de racismo, uma vez que tal prática
vai além de entendimentos sobre etnias, sendo uma construção histórico-cultural
discriminatória que visa o controle ideológico.
O
entendimento do Tribunal partiu do ponto que a dita criminalização não impede a
liberdade de expressão de grupo religiosos, que tendem a condenar as
orientações sexuais e identidades de gênero desviantes do espectro
cisheteronormativo. Uma vez que tal posicionamento não configure um discurso de
ódio, ou seja, não incite violência contra essa população, as entidades
religiosas continuam tendo sua autonomia e direito de discurso preservados. Em
outras palavras, figuras religiosas podem dizer que não concordam, ou até mesmo
que Deus não é favorável a esses comportamentos, considerados desviantes, desde
que não incentive os fieis a violentarem ou discriminarem esses grupos.
Em
relação ao processo de judicialização, observamos a ação dos Tribunais em
situações que deveriam ser resolvidas pelo Poder Legislativo; entretanto, de
acordo com Michael McCann, devemos entender essa tendência como algo que vai
muito além da simples “vontade” dos magistrados de intervir, uma vez que se
trata de um processo que envolve diversos outros atores, tanto do próprio
Estado quanto da sociedade, e a mobilização do direito consiste em "ações
de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses
e valores", tornando-se, assim, um importante instrumento democrático.
A
população age ativamente para esse processo quando passa a demandar mudanças
que não acredita que virão de seus legisladores; e os próprios políticos também
o fazem, em uma ação estratégica, ao delegar decisões polêmicas aos juristas
por medo de consequências políticas, como possíveis quedas na popularidade. Chega-se, portanto, à conclusão de que o
processo de judicialização não parte somente dos tribunais, ou seja, eles não
são os grandes "vilões" que buscam a supremacia. Este processo também
envolve a interação da sociedade com os magistrados, visando a uma tutela cada
vez maior.
Essas
decisões judiciais são entendidas como “fichas para a negociação”, segundo
McCann, uma vez que raramente apaziguam conflitos; na realidade, sua tendência
é atiçá-los. Levando em consideração que as deliberações do judiciário abrem
precedentes para que mais grupos interessados ajuízem suas reivindicações e
busquem, cada vez mais, um desenvolvimento, uma mudança na mentalidade social
vigente. A título de exemplo, a equiparação da União Estável (que permite o
reconhecimento de direitos a casais homoafetivos) ao casamento abriu
precedentes para que, anos depois, a ação aqui analisada (ADO nº26/DF) fosse
ajuizada, e a LGBTfobia fosse finalmente criminalizada. A atuação do poder
judiciário no primeiro caso forçou a sociedade a se adaptar a uma nova
realidade e permitiu que a luta da população LBGT+ avançasse.
Julia Parreira Duarte Garcia - Direito Matutino
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