Sob a perspectiva de Bourdieu, o qual tinha como temática
de estudo o poder simbólico, o direito também era um dos instrumentos capazes
de exercer seu poder na sociedade. Para tanto, esta ciência deveria
transparecer ser a mais racional possível, a fim de que sua legitimidade não
fosse questionada, mesmo que por trás desta “vestimenta” existisse interesses
de classe, fazendo do direito seu instrumento de pressão e de alcance. Diante
disso, o campo jurídico tornou-se um cenário de relações de força e de pressão
propriamente jurídica, exteriorizada a partir dos espaços dos possíveis. Dessa forma, as decisões encaram o impasse
entre a doutrina, a jurisprudência e a produção científica colidindo com os
vetos provenientes de pensamentos moralistas e religiosos.
Em um primeiro plano, é preciso evidenciar que as
demandas sociais levadas ao judiciário são fruto de uma ADPF – Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental – ou seja, uma legislação vigente que estaria
contrariando os princípios da constituição. Nesse interim, coube ao Judiciário
analisar e julgar o pedido. Uma demonstração de racionalização do direito e da
interferência da moral/religião nessas decisões podem ser encontradas na parte
do julgamento destinada aos “Amicus
curiae” – judiciário convida especialistas para contribuir com informações
pertinentes ao julgamento, inclusive a CNBB – grupo católico – julgou-se
influente para opinar. Ainda que os ministros tivessem tentado embasar suas
justificativas em circunstâncias estritamente técnicas, estes, principalmente aqueles
que votaram de maneira contrária ao pedido, mostraram-se influenciados pelo seu
“habitus” – termo usado para definir
as tendências que os indivíduos estão sujeitos a tomar devido ao meio social em
que estão inseridos. Ricardo Lewandowski, ao expor seu voto, traz uma citação grega
de Xenófanes, “A verdade certa, homem
nenhum conheceu, nem conhecerá.”; a princípio, pode ser vista de maneira
ingênua quanto à interpretação das normas. Contudo, este relaciona a verdade
suprema, a “essência” de toda a verdade, a um plano inteligível que está além
do terreno, logo, o ser humano não é capaz de compreender. Desse modo, vê-se
que o ministro apresenta-se imbuído pelo seu habitus, além de um moralismo e da religião, influindo sobre uma
população plural e em um território laico.
Não obstante, os ministros se mostrarem tendenciosos,
fato que se encaixa à descrição do direito transvestido de Bourdieu, somente
para transparecer imparcial e justo. Há também a problemática levantada por
esse mesmo ministro supracitado, o qual se questiona se seria correto o Judiciário
alterar um texto legislativo, função esta que seria, supostamente, do Poder Legislativo.
O espaço dos possíveis torna-se mais
próximo ao âmbito do “impossível”, pois nesse sistema bicameral predomina o
moralismo, não mais velado como no Judiciário, mas de maneira organizada em bancadas
legislativas que se alinham para vetar e aprovar o que lhes convêm. Assim sendo,
as mulheres se encontram sujeitas a terem seus destinos definidos por outrem
que não compartilha de seu habitus;
pelo contrário, o extremo oposto – homens moralistas e que não entendem o peso
de carregar um feto destinado a falecer nas primeiras horas de vida caso este não
faleça ainda no útero.
Portanto, nota-se que o direito trilha passos lentos para
adequar a legislação às demandas sociais e isso é fruto de representantes
negligentes com suas funções, seja do Judiciário ou do Legislativo. Logo, urge que
estes honrem seus cargos e abandonem a instrumentalização da ciência jurídica,
não servindo a uma ordem hegemônica que exclui as minorias e que usa de uma
desonestidade intelectual para aprovar textos que condizem somente com suas
crenças pessoais e não ao interesse público. Com a mudança, é possível
vislumbrar uma sociedade mais justa e que não sustenta a via crucis de uma mãe no aguardo da morte de um feto anencefálico,
por exemplo.
Bianca de Faria Cintra -
Direito Noturno, 1º Ano.
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