Em Abril de 2012, chegou ao Supremo Tribunal Federal a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 54, que tratava
sobre o aborto, ou como denominado no processo, “antecipação terapêutica” de
gestações de fetos anencéfalos. A arguição busca demonstrar o caráter
inconstitucional da criminalização (tipificada nos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II, do Código Penal) dessa espécie de interrupção de gravidez.
Na procura por uma solução coerente e equilibrada, uma vez
que apesar da laicidade do Estado, há a interferência dos chamados “campos” por
Bourdieu, esses campos se conceituariam como todo e qualquer espaço social em
que se engendram diversos recursos na dinâmica funcional, sendo neste caso os
campos morais e religiosos, que contrapunham ao tema em pauta. Deu-se assim na corte um intenso processo de
debates, em que os ministros em seus votos explicitaram suas opiniões e visões.
Dessa forma, com as votações sob a relatoria do ministro
Marco Aurélio, foram oito votos favoráveis (Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz
Fux, Cármem Lúcia, Ayres Brito, Gilmar Mendes e Celso de Mello) e dois
contrários (Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso). Nas decisões fundamentaram
seus votos em fatos, fatos comprovados por médicos e especialistas, além de
notável e profunda hermenêutica acerca das normas.
Com toda essa contextualização acerca da ADPF 54, analisando
a situação á luz do pensamento do sociólogo e filósofo francês Pierre Bourdieu,
pode-se notar facilmente o que ele chama de “historicização da norma”, que é adequação
de uma nova circunstância a uma lei anteriormente já prevista, na tentativa de
preenchimento de lacunas no ordenamento, através de interpretações, assim como
essa situação do aborto de anencéfalos, uma vez que não existe uma norma
própria que versa sobre o assunto.
A ideia bourdiesiana da independência do Direito em relação às
forças externas serem uma mera ilusão é confirmada na atualidade e em especial
nesse caso, pois ao observar as contraposições á ADPF, nos argumentos das
organizações religiosas que são contra a descriminalização da antecipação
terapêutica, vemos em maioria pensamentos pautados unicamente em crenças, nenhum
viés científicos, e, até mesmo ferindo inúmeros Direitos Humanos se analisar meticulosamente.
Na perspectiva do pensador mencionado acima, tal conduta
caracteriza-se como uma desconsideração, uma quebra da dinâmica do Direito, que
para ele seria uma relação entre a “lógica positiva da ciência” e a “lógica
normativa da moral”. Além disso, caso
essas argumentações realmente não possuam vertentes plausíveis e com
embasamentos científicos, estariam ultrapassando seu próprio campo (religioso)
e intervindo indevidamente no campo jurídico, que como diz Bourdieu, deve ser
sempre, simultaneamente, lógico e ético.
Devemos ter a consciência de que, apesar de todas as
considerações legais e, inevitavelmente morais - uma vez que como a própria
crítica á ideia do direito como sendo “autopoiético” que Bourdieu faz a Luhmann,
explicita que o Direito não é algo isolado, ele se faz a partir das demandas
sociais - também devem ser feitas reflexões acerca das mulheres, as gestantes
em questão.
Submetendo as gestantes a tal processo, estamos ferindo direitos
previstos em compromissos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro, além
de princípios e garantias fundamentais da própria Constituição Federal, como
por exemplo, dignidade da pessoa humana, liberdade, autonomia da vontade,
direito a saúde, além de preservação tanto da integridade física como da
psicológica. Fazer com que uma mulher compulsoriamente tenha que levar a gestão
de um feto sem nenhuma chance de vida potencial, cientificamente falando como
presente no acórdão, “um produto patológico”, é uma situação análoga á tortura sob
meu ponto de vista.
Além disso, em um panorama geral acerca da discussão entre
os especialistas presentes no processo, o aborto seria a interrupção de uma
gestação na qual há um produto que virá a ser uma vida, uma vida potencial, o
que não ocorre no caso do feto com anencefalia, dessa maneira, tecnicamente nem
deveria se falar em aborto, pois estaria colocando única e exclusivamente a
vida e a psique da gestante em risco, além do sofrimento também enfrentado
pelos familiares.
Portanto, acredito que a discussão realizada pelos ministros
foi de extrema importância e a decisão, o “veredicto”
bourdiesiano, dado de maneira demasiadamente coerente, uma vez que levou em conta
o maior número de aspectos e perspectivas possíveis, a “eficácia simbólica”,
uma vez que, como dizia Bourdieu, levando em conta apenas racionalidade puramente
aplicada, ficaríamos ás margens da vontade dos juízes e discricionariedades.
Logo não apenas
aplicando normas, mas interpretando-as e sopesando seus reflexos no seio
social, decidiram os magistrados do supremo, como dito no voto do ministro Luiz
Fux, em uma passagem acerca da visão dos jusfilósofos Habermas e Dworkin sobre
a questão, colocou-se o tema como uma “batalha” hostil, “pró life versus pró choice”, devendo para combater isso,
considerar as diversas visões e mediar a relação entre extremos posta, da
maneira mais coerente possível, e dessa maneira, em minha concepção, o Supremo
em sua maioria o fez, constituindo elementos geradores do habitus, utilizando de forças/opiniões divergentes para chegar a
decisão.
UNESP Franca
Letícia E. de Matos
Direito - Matutino - 1°ano
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