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domingo, 18 de agosto de 2019

Bourdieu e a expressão do Princípio da Transformação do Direito na ADPF 54

No ano de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde propôs perante o Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54, objetivando que o fato típico e antijurídico constante dos Artigos 124, 126 e 128 do Código Penal não incidisse em casos de Aborto de fetos anencéfalos. Oito anos depois, em abril de 2012, o Supremo decidiu por maioria julgar procedente a ADPF e apaziguar o entendimento jurídico de que o aborto de fetos anencéfalos não caracteriza infração ao Código Penal. A análise que faremos do presente julgado à luz do teórico e sociólogo francês Pierre Bourdieu nos é muito frutífera, rendendo grande e positivo debate sociológico. 
    A Confederação que moveu a ADPF se pautou principalmente no argumento de que a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos deveria ser “descriminalizada” (deixar de incidir nos dispositivos supracitados) haja vista que fetos com essa condição não teriam a menor expectativa de vida, e que postergar e dar continuidade à gestação do feto apenas acarretaria danos imensuráveis à saúde física e psíquica da gestante. Além no argumento, conclui-se que a continuidade da obrigação que o Código Penal produzia no sentido de impedir a interrupção de tal sofrimento descumpriria preceitos fundamentais do Estado brasileiro, tais como a Dignidade da Pessoa Humana; a Autonomia da Vontade; o direito à Saúde; dentre outros,  podendo até ser considerada como tortura. 
    Logo no começo da leitura do Julgado, a CNTS se diz disponível para providenciar a emissão de pareceres técnicos e/ou a tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria, caso se entenda necessário”. (p. 5). Essa disponibilidade em muito incide sobre conceitos dissertados pelo sociólogo. Bourdieu trabalha - criticando a Teoria Kelseniana - com a ideia de que a autonomia total e absoluta do Direito perante as relações externas é uma ilusão, e que na verdade haveria uma autonomia relativa do Direito, que vemos muito bem identificada no excerto acima. Note que a CNTS admite tratar-se de matéria que - uma vez envolver conceitos médicos específicos como anencefalia -  provavelmente irá requerer pareceres científicos de outras áreas para além da área pura e simplesmente jurídica. Utilizando-se da conceituação do autor quanto aos campos existentes, podemos concluir que o trecho nos serve perfeitamente de exemplo para que exploremos como uma mesma matéria (Aborto de anencéfalos,  no caso) pode ser analisada por diversos prismas que variam conforme o campo de análise. Ora, se analisamos  o Aborto de anencéfalos exclusivamente sob o campo jurídico, podemos sequer conseguir diferenciar este tipo dos demais tipos de aborto, visto que anencefalia é um conceito médico e não jurídico,  porém, quando analisada a matéria sob o prisma de mais campos (o campo da medicina por exemplo) ampliamos nossos horizontes e podemos concluir tratar-se de um tipo de Aborto que pode ser necessário em muitos casos. Tal conclusão retorna ao campo jurídico e repercute na procedência e descriminalização da prática, nos mostrando, conforme Bourdieu, a interlocução entre os campos e a autonomia relativa do Direito na prática. 
Ademais, esse exemplo prático constante da  ADPF de como a interlocução entre os vários campos do saber pode gerar efeitos no campo do Direito muito se relaciona também com o Princípio da Transformação do Direito de Bourdieu, caracterizado pelas mudanças jurídicas resultantes dos conflitos da Sociedade. Segundo o autor - e reforçando a ideia da autonomia relativa -, o Direito não é inerte aos conflitos sociais, ou seja, não é a estrutura interna do Direito que promove a sua mudança, mas sim a procura, aquilo que está fora e que procura e penetra no campo jurídico. Vamos exemplificar. A iniciativa da alteração da interpretação dos dispositivos criminais não parte do Direito, mas sim de um segmento social (CNTS, representando os trabalhadores da saúde) o qual se via atingido constante e rotineiramente pela proibição advinda do Direito. Ela então procura o Direito e solicita a transformação. Logo manifestado esse interesse, os setores contrários à transformação também procuram o Direito para expressar sua oposição ao pedido (CNBB, à exemplo), ficando assim caracterizado o conflito social. Avançando, temos então o Direito diante de um impasse de certa forma dialético: atender ao pedido dos que clamam por mudança ou atender àqueles que se vêem ofendidos com a mudança? Como que numa relação de Tese e Antítese, o Direito buscará através de alguns critérios chegar à uma Síntese.     É nessa ideia de critérios utilizados como pilares à decisão que entra outro conceito do autor, o conceito de Espaço do Possível. Por um lado o Direito não se mantém inerte, e por outro também não atende - utopicamente - total e completamente todas as reivindicações sociais, conclui-se então que ele dispõe de mecanismos para instrução e seleção do debate. Podemos citar como elementos deste leque de critérios os valores que permeiam a sociedade, bem com a Doutrina e a Jurisprudência que servem de baliza ao raciocínio jurídico. Exemplo claro e conciso desta conceituação é o trecho da ADPF no  qual o Julgador disserta acerca dá participação de entidades religiosas no debate.

Isso não quer dizer, porém, que a oitiva de entidades religiosas tenha sido em vão. Como bem enfatizado no parecer da Procuradoria Geral dá República relativamente ao mérito desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, “numa democracia, não é legítimo excluir qualquer ator da arena de definição do sentido da Constituição. Contudo, para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas” (folhas 1026 e 1027), ou seja, os argumentos devem ser expostos em termos cuja adesão independa dessa ou daquela crença. 
(p. 43). 

    Percebemos no trecho claramente a ideia de Espaço do Possível. Não é possível ao Magistrado acatar total e completamente determinada crença religiosa (tese), porém também não se é legítimo excluir este segmento social do debate (antítese), assim, pondo numa balança ambos os lados chega-se à síntese de que a participação é válida, porém desde que os argumentos advindos dessa participação sejam sopesados e apenas gerem efeitos quando expressarem interesses públicos. O Magistrado manobra dois lados conflitantes (abrir a participação ou não do debate) no caso em tela com base no Espaço do Possível: não me é possível - diante da laicidade do Estado - permitir que determinada religião exerça influência numa decisão de Órgão estatal, porém também não me é possível censurar a participação deste segmento no debate, em sendo assim, chega-se ao Espaço do Possível de que a participação será permitida com certos critérios. 

   Outro fator de interessante análise no presente caso é o da historicização da norma. Quando o Direito é acionado para solucionar um caso no qual não há previsão normativa, o magistrado adapta as normas já existentes para servirem de base à sua decisão, criando um precedente e um marco histórico no Direito, como acontecido no presente Julgado. Por mais que ao nos depararmos e esmiuçarmos o caso em tela somos claramente convencidos de que a procedência da ADPF era necessária e em muito melhorou a vida de milhares de mulheres e servidores da saúde, cabe-nos também nos atentarmos aos fatores que levaram alguns dos Ministros a votarem contra a procedência da Arguição. Alguns argumentaram no sentido de que a presente demanda estaria além da competência do Poder Judiciário, uma vez que, por ter certo teor de alteração legislativa, seria de competência do Poder Legislativo. Tais impasses expressam a magnitude da decisão, bem como que o supracitado teor representa claramente a historicização da norma trabalhada por Bourdieu, uma vez que a decisão, além de não ter precedentes na matéria,  foi de grande impacto jurídico, histórico e social ao país. 

Adelino Mattos Marshal Neto
Direito - Matutino.

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