A
questão do aborto relativa aos casos de fetos anencefálicos, quando levada ao
Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde,
gerou debates de extrema importância para a sociedade brasileira, além de
possibilitar uma análise sociológica de acordo com os princípios do francês
Pierre Bourdieu sobre os problemas levantados no plenário. Embates envolvendo
os conceitos de aborto, aborto eugênico e interrupção terapêutica do parto
foram frequentes, além da relevante questão levantada pelos ministros sobre os
limites da atuação do judiciário perante a autonomia do poder legislativo.
O conceito de Espaço dos Possíveis e os
conflitos envolvendo a sua delimitação ficam evidentes na colisão entre as opiniões
dos ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. O primeiro destacou a importância
da Suprema Corte brasileira produzir uma decisão clara e de efeito vinculante
sobre a questão do aborto de fetos anencefálicos, pois devido à frequência de
casos desse tipo no território brasileiro (10 para cada 10.000 nascimentos,
segundo a OMS), os tribunais de instâncias inferiores frequentemente precisam
produzir decisões a esse respeito, e a divergência entre eles acaba gerando um
estado de insegurança jurídica. Por outro lado, o ministro Lewandowski
desenvolveu a sua argumentação no sentido de que não é papel do Supremo
Tribunal Federal legislar e, ao produzir uma decisão como essa, estaria
violando os limites que lhe competem e interferindo sobre a atuação do
Congresso Nacional. Os dois pontos de vista possuem lógica, porém o
posicionamento de Fux, acompanhado pela maioria do plenário, foi necessário,
pois o Poder Legislativo mostrou-se negligente quanto à análise dessa questão,
não assumindo as suas responsabilidades como representante do povo. O deputado
federal José Aristodemo Pinotti destacou, durante sua fala, ter apresentado ao
Congresso Nacional um projeto de lei acerca do aborto terapêutico em caso de
fetos anencefálicos, mediante a possibilidade de a mulher optar ou não, pela
manutenção da gestação. Entretanto, o Congresso ainda não havia produzido uma
votação à época da decisão no Supremo. Diante de tais fatos, cumpre destacar a
fala do sociólogo Dr. Agnaldo Barbosa, na qual destaca que essa posição de
supremacia do judiciário trata-se de uma “alternativa em meio a uma falta de
alternativas”, justificando tal posição do tribunal em casos de relevante particularidade.
Outro conceito importante de
Bourdieu pode ser observado no voto dos ministros Joaquim Barbosa e Luiz Fux ao
promoverem a Historicização da Norma presente no Código Penal de 1940. De
acordo com os ministros, o legislador, ao prever como excludente de ilicitude o
aborto para casos de estupro ou quando não houver outra forma de salvar a vida
da gestante, tinha o objetivo de tutelar a saúde física e psíquica das mulheres
grávidas. Dessa forma, se o aparato tecnológico necessário para diagnosticar
fetos anencefálicos já tivesse sido desenvolvido na época de elaboração do
Código Penal, provavelmente o legislador também teria classificado tal situação
como pertencente a essas situações de desclassificação do delito, pois a
gestação de fetos anencefálicos claramente provoca danos físicos e psíquicos na
mulher.
Por fim, cumpre salientar a
importante explicação do desenvolvimento do Estado laico brasileiro ao longo
das constituições, dada pelo relator do processo, o ministro Marco Aurélio.
Segundo ele, o carácter laico do Estado obriga os tribunais a aceitarem como
justificativas para as suas decisões apenas argumentos traduzidos “em termos de
razões públicas”, isto é, apenas argumentos cuja adesão seja independente de
crenças pessoais. Além disso, é importante destacar que a postura de condenar
criminalmente uma mulher que se recusa a gerar um filho inviável pode ser
caracterizada como uma Violência Simbólica, pois o Estado estaria provocando um
sofrimento moral e psicológico nas gestantes ao antecipar a ultima ratio em detrimento da tutela que
deveria oferecer primeiramente diante do contexto dessas mulheres sensível à necessidade
de avanço dos seus respectivos direitos, ainda mais, como no acórdão em questão,
sob rigoroso suporte médico-valorativo advindo de um diálogo entre o universo
simbólico da bioética com o do Direito.
Nicolas
Candido Chiarelli do Nascimento
Turma
XXXVI
Período:
matutino
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