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domingo, 18 de agosto de 2019

ADPF 54 à luz de Bourdieu


               A questão do aborto relativa aos casos de fetos anencefálicos, quando levada ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, gerou debates de extrema importância para a sociedade brasileira, além de possibilitar uma análise sociológica de acordo com os princípios do francês Pierre Bourdieu sobre os problemas levantados no plenário. Embates envolvendo os conceitos de aborto, aborto eugênico e interrupção terapêutica do parto foram frequentes, além da relevante questão levantada pelos ministros sobre os limites da atuação do judiciário perante a autonomia do poder legislativo.
             O conceito de Espaço dos Possíveis e os conflitos envolvendo a sua delimitação ficam evidentes na colisão entre as opiniões dos ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. O primeiro destacou a importância da Suprema Corte brasileira produzir uma decisão clara e de efeito vinculante sobre a questão do aborto de fetos anencefálicos, pois devido à frequência de casos desse tipo no território brasileiro (10 para cada 10.000 nascimentos, segundo a OMS), os tribunais de instâncias inferiores frequentemente precisam produzir decisões a esse respeito, e a divergência entre eles acaba gerando um estado de insegurança jurídica. Por outro lado, o ministro Lewandowski desenvolveu a sua argumentação no sentido de que não é papel do Supremo Tribunal Federal legislar e, ao produzir uma decisão como essa, estaria violando os limites que lhe competem e interferindo sobre a atuação do Congresso Nacional. Os dois pontos de vista possuem lógica, porém o posicionamento de Fux, acompanhado pela maioria do plenário, foi necessário, pois o Poder Legislativo mostrou-se negligente quanto à análise dessa questão, não assumindo as suas responsabilidades como representante do povo. O deputado federal José Aristodemo Pinotti destacou, durante sua fala, ter apresentado ao Congresso Nacional um projeto de lei acerca do aborto terapêutico em caso de fetos anencefálicos, mediante a possibilidade de a mulher optar ou não, pela manutenção da gestação. Entretanto, o Congresso ainda não havia produzido uma votação à época da decisão no Supremo. Diante de tais fatos, cumpre destacar a fala do sociólogo Dr. Agnaldo Barbosa, na qual destaca que essa posição de supremacia do judiciário trata-se de uma “alternativa em meio a uma falta de alternativas”, justificando tal posição do tribunal em casos de relevante particularidade.
            Outro conceito importante de Bourdieu pode ser observado no voto dos ministros Joaquim Barbosa e Luiz Fux ao promoverem a Historicização da Norma presente no Código Penal de 1940. De acordo com os ministros, o legislador, ao prever como excludente de ilicitude o aborto para casos de estupro ou quando não houver outra forma de salvar a vida da gestante, tinha o objetivo de tutelar a saúde física e psíquica das mulheres grávidas. Dessa forma, se o aparato tecnológico necessário para diagnosticar fetos anencefálicos já tivesse sido desenvolvido na época de elaboração do Código Penal, provavelmente o legislador também teria classificado tal situação como pertencente a essas situações de desclassificação do delito, pois a gestação de fetos anencefálicos claramente provoca danos físicos e psíquicos na mulher.
            Por fim, cumpre salientar a importante explicação do desenvolvimento do Estado laico brasileiro ao longo das constituições, dada pelo relator do processo, o ministro Marco Aurélio. Segundo ele, o carácter laico do Estado obriga os tribunais a aceitarem como justificativas para as suas decisões apenas argumentos traduzidos “em termos de razões públicas”, isto é, apenas argumentos cuja adesão seja independente de crenças pessoais. Além disso, é importante destacar que a postura de condenar criminalmente uma mulher que se recusa a gerar um filho inviável pode ser caracterizada como uma Violência Simbólica, pois o Estado estaria provocando um sofrimento moral e psicológico nas gestantes ao antecipar a ultima ratio em detrimento da tutela que deveria oferecer primeiramente diante do contexto dessas mulheres sensível à necessidade de avanço dos seus respectivos direitos, ainda mais, como no acórdão em questão, sob rigoroso suporte médico-valorativo advindo de um diálogo entre o universo simbólico da bioética com o do Direito.

Nicolas Candido Chiarelli do Nascimento
Turma XXXVI
Período: matutino






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