As
delimitações do campo jurídico de Bourdieu frente às decisões do STF
Em meados dos anos de 1970, o sociólogo Pierre Bourdieu escreveu a obra O
Poder Simbólico, em que busca compreender como as produções e tradições dos
sistemas simbólicos exercem poder de dominação. Para Bourdieu, a sociedade se
divide em campos. Um campo social é uma parcela específica e distinta da
sociedade com dinâmica social própria, ou seja, possui certa autonomia e
peculiaridades que as distinguem dos demais campos sociais existentes.
No capítulo A Força do Direito, Bourdieu decreta que o campo jurídico
deve esquivar-se do formalismo, que prega uma autonomia do Direito frente as
demais pressões sociais, e também do instrumentalismo, que concebe o Direito
como uma ferramenta da classe dominante. Ademais, o sociólogo estabelece que dentro
do campo jurídico ocorre uma luta pelo “monopólio do direito de dizer o Direito”,
em os agentes do campo jurídico concorrem pelo domínio exclusivo da
interpretação da lei. Em suma, o Direito não é apenas as normas estabelecidas
pelo Legislativo, é também a interpretação e a aplicação dessas normas, que
embora tendam a reduzir a variabilidade de interpretações, uma parte é arbitrária
à invenção do magistrado.
A obra de Bourdieu sobre o campo jurídico fornece ferramentas para uma análise
sociológica da produção de normas jurídicas e seus efeitos na sociedade. Como,
por exemplo, no caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54
(ADPF 54). A ação foi encaminhada ao Supremo Tribunal Federal pela Comissão
Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), após um processo com um pedido de
autorização judicial do aborto de uma gestante de um feto anencefálico se
arrastar na justiça culminando com o nascimento da criança que morreu sete
minutos após o parto.
A ADPF 54 visava garantir uma segurança jurídica ao regularizar e
autorizar a interrupção de gravidez de feto anencéfalo, quando esta fosse
consentida pela gestante, já que esta patologia torna inviável a vida
extra-uterina. O Acórdão da ADPF 54, com 8 votos a favor e 2 contra, prevê a inconstitucionalidade
na interpretação da interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta
tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, que
descrevem os casos em que a interrupção da gravidez configura crime. A decisão dos
Ministros favoráveis à interrupção de gravidez de feto anencéfalo é nitidamente
um exemplo de como uma decisão judicial pode se ajustar às pressões sociais. O
que coincide com o pensamento antiformalismo de Bourdieu.
Para o sociólogo, o leque de possíveis interpretações e decisões supõe
que a decisão judicial não é a vontade ou o consenso dos juízes (intérpretes),
e sim a vontade do legislador que viabilizou a norma como uma solução prática
para determinado problema da sociedade. Diante do exposto, critico à ação do
STF, pois a decisão dos magistrados do STF no Acórdão da ADPF 54 criou uma nova
norma dentro do Código Penal, o que não é seu papel, e sim do Legislativo. Por consequência,
tal ato abre precedente para ampliar o subjetivismo e criação dos juízes em sobreposição
à norma vigente, o que não configura como parte da dinâmica do campo jurídico segundo
Bourdieu.
Raquel Rinaldi
Russo – 1º ano Direito Matutino
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