Pierre
Bourdieu, sociólogo francês do século XX, faz uma importante análise acerca dos
rumos do Direito em sua obra “O Poder Simbólico”. O escritor apresenta uma
visão do direito como relativamente autônomo, isto é, sujeito às pressões
externas (sociais, econômicas, biológicas etc) apenas até um determinado
limite, chamado por ele de “Espaço dos Possíveis”.
Na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que buscava reparar a
lesão aos direitos fundamentais decorrentes da interpretação de aborto de fetos
anencéfalos conforme os artigos 124 e 126 do Código Penal, é possível perceber
o funcionamento desta dinâmica apontada por Bourdieu.
Nesse
caso, o campo da medicina interfere diretamente em diversos aspectos, como na definição
do que é vida. Os campos jurídico e médico se confrontam e se complementam a
todo momento diante da problemática da situação.
Além
disso, as interferências de uma parte da sociedade que demanda a legalização do
aborto se chocam com as pressões morais da lei positivada, criando uma luta
simbólica que resulta em um veredicto.
O
resultado é fruto de uma ponderação entre as normas do ordenamento jurídico e
elementos externos, como a pressão social, a ciência, e outros aspectos externos
considerados pelos magistrados. Porém, essa mudança na interpretação da lei,
como foi no caso da ADPF 54, só pode ser realizada no espaço do possível. A
alteração no entendimento da legislação não pode ser feita de acordo com a
compreensão individual do magistrado sem considerar aquilo que foi estipulado
inicialmente pelo poder legislativo.
No voto
da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, ela afirma que é papel
dos magistrados assegurar as garantias fundamentais, trazer mudanças para o
direito e atualizá-lo sempre que possível. No entanto, na ADPF e segundo os
escritos de Bourdieu, fica claro que o STF não pode tomar o papel de legislador
para si e decidir todas as questões existentes, ou seja, nesse caso o Supremo
não poderia tornar todas as espécies de aborto legais pois a legislação
brasileira prevê exatamente o contrário, assim como a sociedade não se mostra
pronta para aceitar tamanho avanço. Ainda assim, os magistrados possuem o poder
de assegurar os direitos fundamentais e puderam mudar a interpretação do Código
Penal para que as mulheres pudessem fazer a antecipação terapêutica do parto em
casos de anencefalia.
Essa é a
clara expressão da luta simbólica dentro do campo do direito e entre outros
campos. As decisões que regem todo o ordenamento jurídico e a vida das pessoas
advém de diversas colisões entre aqueles que querem possuir o poder simbólico
de punir, de permitir e até de afirmar o que é vida.
Mariana Paz F. Puentedura
Matutino
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