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domingo, 18 de agosto de 2019

Direito Enquanto Ciência Dinâmica

          "Se as leis são cruéis, ou logo serão modificadas, ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime impune"(p.31). No livro Dos Delitos e Das Penas, Cesare Beccaria, autor da obra, faz uma importante análise acerca do fenômeno criminológico na segunda metade do século XVIII. Apesar do tempo apresentar-se relativamente remoto, inúmeros aspectos apontados por Beccaria já naquela época permitem o melhor conhecimento do que se entende por delito e pena ainda na atualidade.
          A sentença inicialmente citada demonstra a importância do estabelecimento do Direito como ciência dinâmica. Em consonância a essa ideia, temos o que disserta Pierre Bourdieu acerca do que viria a ser o "Poder Simbólico". Dito isso, esse texto sócio-jurídico visa, então, à análise do evento que ficou conhecido como ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54/DF sob a perspectiva da teoria tecida por Bourdieu e da ideia de dinamicidade do Direito.
          Primeiramente, é importante desenvolver uma breve noção do que foi a ADPF 54 e porque sua repercussão foi de âmbito internacional. O sustentáculo de toda essa movimentação jurídica foi a discussão acerca da interrupção da gravidez de feto anencefálico, evento considerado legal ou ilegal segundo a interpretação dada a ele. Resumidamente, salvo os respectivos e complexos argumentos, são duas posições corriqueiras assumidas pelos juristas: a primeira é aquela que afirma a ilegalidade de tal ato com o pressuposto de descumprimento dos artigos 124, 126 e 128 - incisos I e II - do Código Penal brasileiro; a segunda, por sua vez, está pautada na alegação de ausência de crime em dada ação sabido que a Constituição Federal prevê a autodeterminação da pessoa humana, assim como sua liberdade sexual, reprodutiva e garantia à saúde.
         Com o propósito de dar início à aplicação da teoria de Bourdieu ao caso concreto acima exposto, elenca-se aqui a diferenciação que o estudioso fez entre os doutrinadores (elaboração teórica) e os operadores (atividade prática) do Direito. Tendo em vista que o Código Penal vigente no Brasil foi criado em 1940, nota-se o grande lapso temporal existente entre os juristas que foram responsáveis por essa criação e aqueles que estão a cargo de aplicá-lo ainda hoje. No que se refere à prática abortiva, o Código Penal mostrou-se muito rígido no período de criação, sendo que até hoje são abertas pouquíssimas ressalvas acerca desse tema, o qual beira a quase completa criminalização.
           Feita a consideração do parágrafo anterior, esbarra-se em mais um tópico teórico desenvolvido por Pierre Bourdieu: é ilusório pensar na independência do Direito em face das relações de forças externas. Isso quer dizer que o campo jurídico deve abrir-se à realidade, permitindo que ela o molde e transforme. Logo, é imprescindível que o recorte da prática do aborto em casos de anencefalia do feto sejam incluídas no Código Penal, com o propósito de compatibilizar o quadro normativo brasileiro à realidade não idealizada do país. Importante salientar que a cada dez mil nascimentos com vida, cerca de dez deles compreendem fetos desprovidos de massa cerebral.
           Outro aspecto da teoria aqui assumida e que se faz presente no debate fomentado na ADPF 54 é acerca da ideia de "espaço do possível", que seria a possibilidade de mudanças com respeito às ancoragens pré-existentes. No caso em questão, a ideia de que estaria sendo atribuída a função do Poder Legislativo ao STF reduz em muito o espaço do possível para o aborto de feto anencefálico. Ao corpo de ministros caberia apenas submeter o caso à legislação vigente (Código Penal), constatando as ilegalidades ou não cometidas pelos acusados e a necessidade de estipular uma sentença punitiva. Dessa forma, pode-se considerar sim que houve uma confusão de poderes, caracterizada, também, por uma má atribuição dos espaços dos possíveis: não cabe ao STF legislar.
           Por fim, frente ao tema da Arguição, nota-se a presença de inúmeros campos de conhecimento que levam à sensação de impotência jurídica frente à caracterização normativa da "antecipação terapêutica do parto". Misturam-se os campos jurídico, médico, social, religioso e moral  na discussão dessa prática em sociedade. Está aqui a causa de tão estrondosa repercussão do caso.
         Nesse sentido, tão importante quanto notar os divergentes posicionamentos dos ministros votantes nessa ocorrência, datada de 12 de abril de 2012, é dar relevância à dinâmica do Direito, para que a Ciência Jurídica não se torne obsoleta e injusta, como Cesare Beccaria já almejava alertar.

Marco Alexandre Pacheco da Fonseca Filho - 1ºano Direito (diurno)



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