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domingo, 18 de agosto de 2019

A judicialização da política e o habitus jurídico


No dia 12 de abril de 2012 era analisada no Supremo Tribunal Federal a arguição de descumprimento de preceito fundamental 54, que tratava, nas palavras da ministra Cármen Lúcia, não de uma decisão ou permissão quanto ao aborto, mas de uma interpretação dos dispositivos do Código Penal Brasileiro no sentido de se considerar crime a interrupção do feto anencefálico.

Por 8 votos a 2 a corte julgou procedente o pedido, ajuizado pela confederação nacional dos trabalhadores na saúde, de declarar inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencefálico é conduta tipificada do código penal.

Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia diferenciou, de forma científica, a vida biológica e a pessoa humana. A definição do termo vida é definida de forma simples e irrefutável pela biologia como um ser dotado de Composição química específica, Células, Material genético, metabolismo, nutrição e capacidade de responder a estímulos. Afinal, o conceito de vida se estende desde uma simples arqueobactéria até um mamífero desenvolvido, isso não quer dizer, porém, que qualquer vida seja, necessariamente, humana. O inglês John Locke definia o ser humano como um ser dotado de razão, mesmo que apenas em potência na infância, sob essa ótica, um feto anencefálico, na medida que impedido de exercer, mesmo em potência, sua razão, perde sua característica intrínseca como ser dotado de direitos e deveres e, portanto, em uma ponderação de direitos, perderia para o direito à saúde, à liberdade e à dignidade humana da mãe. Nas palavras da ministra: “há que se distinguir (...) ser humano de pessoa humana (...) O embrião é (...) ser humano, ser vivo, obviamente (...) Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana”.

Na teoria de Pierre Bourdieu, campos seriam espaços simbólicos nos quais lutas fundamentam representações. Observando sob essa ótica pode se perceber que a Ministra Cármen Lúcia transita entre diferentes campos para buscar o que entende por justiça. A ministra aborda pelo campo filosófico/sociológico a ideia de uma sociedade organizada pela perspectiva de John Rawls, trata do campo médico ao citar o Dr. H. William Taeusch, trazendo inclusive o juramento de Hipócrates, questionando a posição do Estado de oposição à ética médica e solidifica no campo jurídico, debatendo, sob a perspectiva de Ronald Dworkin a etiologia do Direito e trazendo o Direito a saúde a dignidade da pessoa humana como fundamentos legais do seu voto. Essa transição entre campos, ou poderia se dizer, uma interferência de outros campos no campo jurídico é uma oposição ao formalismo do Direito criticado por Bourdieu, dessa forma, o direito deixa de ser uma força autônoma em face das pressões sociais, assim podendo servir como instrumento para mudança social.

Por outro lado, vale citar o voto do ministro Ricardo Lewandovisky, que, buscou questionar a competência do Supremo para julgar a questão, o ministro cita Konrad Hesse, afirmando: “Uma lei não deve ser considerada nula quando ela pode ser interpretada em consonância com a constituição” e traz uma citação da escola da Exegese: “In claris cessat interpretatio”, ou seja, quando a lei é clara não há espaço para interpretação.

Embora o ministro recorra ao formalismo do Direito, criticado por Bourdieu, poderia se discutir sobre a coesão do habitus jurídico, que, segundo Bourdieu é “aumentada pela disciplina de um corpo hierarquizado o qual põe procedimentos codificados de resolução de conflitos”, sob essa ótica, poderia se discutir se votos baseados em uma consciência social advinda de fora do campo jurídico poderiam afetar a coesão e efetividade do Direito como apaziguador de conflitos.

É inegável que o Brasil vem passando por um processo de judicialização da política e das relações sociais. Nas palavras de Daniel Sarmento: “nos últimos anos e hoje se assiste no Brasil a uma verdadeira judicialização da política e das relações sociais (...) Assim, de instituição quase desimportante em regimes constitucionais pretéritos, o Poder Judiciário converteu-se numa espécie de 'guardião das promessas' de direitos humanos e justiça material, proclamadas na Constituição e em outros textos legais". Observando esse cenário é impossível não questionar: o Direito caminha para se tornar um instrumento definitivo de mudança social ou a perda da coesão constituída no habitus inviabilizará a confiabilidade no judiciário?

Pedro Augusto Ferreira Bisinotto
Direito-Noturno

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