No dia 12 de abril de 2012 era analisada no Supremo Tribunal Federal a
arguição de descumprimento de preceito fundamental 54, que tratava, nas
palavras da ministra Cármen Lúcia, não de uma decisão ou permissão quanto ao
aborto, mas de uma interpretação dos dispositivos do Código Penal Brasileiro no
sentido de se considerar crime a interrupção do feto anencefálico.
Por 8 votos a 2 a corte julgou procedente o pedido, ajuizado pela confederação
nacional dos trabalhadores na saúde, de declarar inconstitucional a
interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencefálico é
conduta tipificada do código penal.
Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia diferenciou, de forma científica, a
vida biológica e a pessoa humana. A definição do termo vida é definida de forma
simples e irrefutável pela biologia como um ser dotado de Composição química
específica, Células, Material genético, metabolismo, nutrição e
capacidade de responder a estímulos. Afinal, o conceito de vida se estende
desde uma simples arqueobactéria até um mamífero desenvolvido, isso não quer
dizer, porém, que qualquer vida seja, necessariamente, humana. O inglês John
Locke definia o ser humano como um ser dotado de razão, mesmo que apenas em
potência na infância, sob essa ótica, um feto anencefálico, na medida que impedido
de exercer, mesmo em potência, sua razão, perde sua característica intrínseca
como ser dotado de direitos e deveres e, portanto, em uma ponderação de
direitos, perderia para o direito à saúde, à liberdade e à dignidade humana da
mãe. Nas palavras da ministra: “há que se distinguir (...) ser humano de pessoa humana (...) O embrião
é (...) ser humano, ser vivo, obviamente (...) Não é, ainda, pessoa, vale
dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto
constitucional da pessoa humana”.
Na teoria de Pierre Bourdieu, campos seriam espaços simbólicos nos quais
lutas fundamentam representações. Observando sob essa ótica pode se perceber
que a Ministra Cármen Lúcia transita entre diferentes campos para buscar o que
entende por justiça. A ministra aborda pelo campo filosófico/sociológico a
ideia de uma sociedade organizada pela perspectiva de John Rawls, trata do
campo médico ao citar o Dr. H. William Taeusch, trazendo inclusive o juramento
de Hipócrates, questionando a posição do Estado de oposição à ética médica e
solidifica no campo jurídico, debatendo, sob a perspectiva de Ronald Dworkin a
etiologia do Direito e trazendo o Direito a saúde a dignidade da pessoa humana
como fundamentos legais do seu voto. Essa transição entre campos, ou poderia se
dizer, uma interferência de outros campos no campo jurídico é uma oposição ao
formalismo do Direito criticado por Bourdieu, dessa forma, o direito deixa de
ser uma força autônoma em face das pressões sociais, assim podendo servir como
instrumento para mudança social.
Por outro lado, vale citar o voto do ministro Ricardo Lewandovisky, que,
buscou questionar a competência do Supremo para julgar a questão, o ministro cita
Konrad Hesse, afirmando: “Uma lei não deve ser considerada nula quando ela pode
ser interpretada em consonância com a constituição” e traz uma citação da
escola da Exegese: “In claris cessat interpretatio”,
ou seja, quando a lei é clara não há espaço para interpretação.
Embora o ministro recorra ao formalismo do Direito, criticado por
Bourdieu, poderia se discutir sobre a coesão do habitus jurídico, que, segundo
Bourdieu é “aumentada pela disciplina de um corpo hierarquizado o qual põe
procedimentos codificados de resolução de conflitos”, sob essa ótica, poderia
se discutir se votos baseados em uma consciência social advinda de fora do
campo jurídico poderiam afetar a coesão e efetividade do Direito como
apaziguador de conflitos.
É inegável que o Brasil vem passando por um processo de judicialização
da política e das relações sociais. Nas palavras de Daniel Sarmento: “nos
últimos anos e hoje se assiste no Brasil a uma verdadeira judicialização da
política e das relações sociais (...) Assim, de instituição quase desimportante
em regimes constitucionais pretéritos, o Poder Judiciário converteu-se numa
espécie de 'guardião das promessas' de direitos humanos e justiça material,
proclamadas na Constituição e em outros textos legais". Observando esse
cenário é impossível não questionar: o Direito caminha para se tornar um
instrumento definitivo de mudança social ou a perda da coesão constituída no
habitus inviabilizará a confiabilidade no judiciário?
Pedro Augusto Ferreira Bisinotto
Direito-Noturno
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