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domingo, 18 de agosto de 2019

A ADPF 54 e a incoerência da consideração da vida

     Em 2012, o amplo debate acerca da legalização da prática do aborto emerge de maneira extraordinária e nunca vista antes na história do judiciário brasileiro. Tendo adotado uma postura de negligência por décadas no que tange as demandas e reivindicações sociais, o congresso nacional jamais havia encarado o assunto de um ponto de vista que convergisse com os dados de desigualdade levantados por institutos de pesquisa e com o movimento de emancipação da liberdade feminina sobre o próprio corpo. Porém, a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°54, que tinha como temática central a prática do aborto em relação a fetos anencéfalos, encaminhada ao STF pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) e defendida pelo hoje ministro Luiz Roberto Barroso, a problemática já recorrente no restante do globo e silenciada no Brasil ganha espaço nas grandes mídias.
     No resumo do processo, o relator Marco Aurélio realiza uma retrospectiva tendo como base os casos presenciados no país na contemporaneidade. Nessa perspectiva, Aurélio relembra o Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, no qual a desembargadora Giselda Leitão Teixeira autorizou a realização do aborto em um caso de anencefalia. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em especial tendo em vista suas formulações a respeito do habitus recorrente nas ações sociais, pode-se vislumbrar a decisão da magistrada a partir de similitudes com a mulher na qual foi realizado o procedimento abortivo, já que, sendo ambas de sexo feminino, há grande possibilidade do habitus da juíza, isto é, de também viver em uma sociedade patriarcal e que inibe a liberdade feminina sobre o próprio corpo, ser consonante a essa demanda social.
     Entretanto, diferentemente da maneira como Marco Aurélio fundamentou seu voto, o ministro César Peluso se mostrou contrário à decisão. De acordo com ele, o conceito de "vida" abarca diversos campos de conhecimento, desde o moral até o científico. O Direito, doravante, deveria se basear somente nos conceitos já formulados pelo próprio campo jurídico, neste caso, aqueles previstos no Código Penal, uma vez que, caso prevalecesse uma interpretação do significado da palavra "vida" sobre a outra, encontrar-se-ia uma postura autoritária. Desse modo, a conduta do ministro vai em contramão à ideia defendida por Bourdieu de que o Direito não é absolutamente autônomo (crítica ao formalismo ascendente desde a Teoria Pura do Direito de Kelsen), pois sempre possibilitou, ao longo da história, a interferência de diversos outros campos no jurídico.
     A título de exemplificação, tem-se as próprias disposições que versam sobre o aborto no Código Penal brasileiro de 1940, que transparecem uma sociedade altamente patriarcal, cientificamente arcaica e que não entrevê a primazia da saúde e do bem estar da mulher. Em seu art.128, por exemplo, o aborto é permitido nos casos de estupro. Ora, se a grande problemática é, como diria muitos, "assassinar bebês", por que há tal previsão na lei? A resposta para esse questionamento é simples: a base do código penal é pautada em um viés religioso e moralista em que não há a preocupação com as "vidas" abortadas, mas sim com a liberdade da mulher sobre o próprio corpo e com a ideia que boa parte da população tem de correlacionar o útero feminino a uma máquina reprodutiva. Portanto, a ADPF 54/2012 é um, definitivamente, um importante marco na jurisprudência brasileira em relação à problemática do aborto, uma vez que se mostrou extremamente necessária anos após, quando uma epidemia de Zika Vírus assolou o país e, com essa decisão, não houvesse um sofrimento prolongado de centenas de mulheres que perderiam os seus filhos antes ou minutos após o parto, caracterizando, por consequência, o que Bourdieu chamou de Historicização da Norma, ou seja, uma norma (ou interpretação) abstrata que ganha força juridica e se insere no curso da história.

Luiz Carlos Ribeiro Júnior - noturno

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