O direito definindo limites e mediando
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°54 (ADPF 54) que trata sobre possibilidade de interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo ou aborto de anencéfalo, conforme as distintas visões do processo, engendra conflitos entre diversos campos da sociedade, além de uma concorrência interna no campo jurídico, que segundo Bourdieu “é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito[...] capacidade reconhecida de interpretar textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social ”(BOURDIEU, 1989, p. 212) .
Destarte, a ADPF 54 conta com diversas fontes de legitimação e negação. Por um lado encontra-se a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que com o conhecimento médico registra, cientificamente, a anencefalia e incita à consciência de todos a impossibilidade de vida expectável no feto anencéfalo, além de que a obrigação da gestação só acarretaria em maiores riscos à mãe, tanto biológicos como psicológicos. Por outro lado, valida-se a manifestação jurídica da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que “defenderam a humanidade do feto em gestação, independentemente de má-formação, bem como o fato de a reduzida expectativa de vida não ter o condão de lhe negar direitos e identidade.”(ADPF 54, 2012, p. 20)
Por conseguinte, o judiciário, que apresenta uma autonomia relativa e baseada na concorrência dentro do campo, como se depreende do trecho “O direito[...] faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este” (BOURDIEU, 1989, p. 237), usa de sua legitimidade para mediar as discussões e dar uma resposta que em tese “responde [...] a necessidades e interesses reais”(BOURDIEU, 1989, p. 240).
Assim, observa-se os exemplos antitéticos dos votos do ministro Marco Aurélio e do ministro Cezar Peluso.De maneira que, enquanto Marco Aurélio cita o Estado laico ao pronunciar “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, Evangelho de São Marcos, capítulo XII, versículos 13 a 17 ”(ADPF 54, 2012, p. 34) e afirma a equiparidade entre os direito fundamentais, Peluso observa o direito à vida como o pressuposto ou condição transcendental da existência de todos os direitos subjetivos e a questão posta como abertura para novos dogmas abortivos que na ocasião não estavam em pauta, o que alia-se mais ao olhar religioso.
Para além disso, os ministros apresentam visões distintas sobre o conceito de historicização da norma, de Bourdieu. Isto é, Marco Aurélio defende a reinterpretação de normas que estiverem ultrapassadas e que não respondessem dignamente à realidade social, como é o caso da questão exposta na ADPF 54 que se embasa na inovação interpretativa do código penal de 1940 sobre questão do aborto de anencéfalos.De forma oposta, Peluso enxerga a clarividência do código penal e afirma que tais tipos de mudanças deveriam ser realizadas através dos corpos representativos do povo, ou seja, o campo político.
Portanto, a partir do julgado e dos conceitos de Pierre Bourdieu, vê-se a grande força do direito como definidor dos limites entre campos, como na determinação de competência sobre a mudança no entendimento do código penal, e mediador de conflitos entre esses, como ocorre entre campos religiosos e científicos representados no julgamento.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1989
STF. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ADPF 54 2012. Relator: Ministro Marco Aurélio Melo
Guilherme Cunha Soares 1° ano direito diurno
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