O sociólogo francês
Pierre Bourdieu sustentava a visão de que o Direito não se firma como ciência
autônoma, sendo o campo jurídico influenciado por pressões externas. Tais
forças exógenas de modificação que incidem sobre o Direito pode advir de
diversas fontes, como dos campos político, econômico e social. Sendo assim, a
ação dos integrantes do Campo Jurídico é guiada de acordo com estas ingerências,
todavia a decisão dos magistrados, assim como a teorização produzida pelos
doutrinadores, são performadas com certa margem, denominada por Bourdieu como
espaço do possível.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
54 é um exemplo evidente sobre como essas forças em conflito na sociedade
adentram no Direito e influenciam as tomadas de decisões pelos magistrados. A
ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, em seu voto expõe a máxima
“cada tempo tem seu direito. A Justiça não é uma ideia acabada, é um fazer que
a sociedade constrói a cada tempo”, sendo assim é evidente como as mudanças
sociais desempenham papel fundante nas atualizações do Direito. Este pensamento
vai de contraponto com a famosa Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, na qual
é defendida a total autonomia do Sistema Jurídico frente ao corpo social. Ademais, a atualização da interpretação das
normas constitucionais por meio de ações levadas ao jugo desta Corte é de suma
importância para a adequação do Direito Brasileiro às novas demandas sociais. A
mesma ministra escreve, em outra parte de seu voto a seguinte máxima “a
atualização do sistema jurídico de acordo com as demandas de seu povo o mantem
vivo”.
A teoria de Bourdieu também traz à reflexão outro aspecto
muito presente na referida Arguição, o conceito de poder simbólico. Este termo
pode ser aproximado da noção de distinção referente à uma determinada posição
de classe. Assim como na definição Weberiana de poder, que consiste na ideia de
exercer influência sobre o agir de outrem, a ideia do pensador francês implica
sobre as disputas simbólicas de influenciar o agir dentro de um mesmo campo
social. No campo jurídico, a decisão de um magistrado de Suprema Corte goza de
um grau de poder superior em oposição à interpretação dada por um juiz de
primeira instância. Isto é evidente na forma com a qual, ordenamento jurídico
brasileiro, as decisões do STF possuem uma força quase vinculante. Por
conseguinte, o entendimento firmado pelo Acórdão da ADPF-54/DF modificou toda a
interpretação jurídica dada pelos magistrados de todas as instâncias da
justiça, bem como alçou novo entendimento referente a uma lei, tornando não
mais necessária permissão judicial para a interrupção terapêutica da gravidez
de feto anencefálico.
Outrossim, todo o texto faz evidente a característica
evidenciada por Bourdieu a respeito do linguajar jurídico. O uso de termos
gerais, bem como construções sintáticas passivas formam os conceitos de
universalização e generalização definidos pelo pensador. O jurista não profere
sua posição de modo pessoal, mas sempre com caráter genérico e universal,
muitas vezes usando expressões como “a vontade da sociedade” para racionalizar
universalmente seu posicionamento. A própria frase supracitada da ministra
Cármen Lúcia deixa claro este conceito, ao utilizar propor que a justiça é
construída pela sociedade e não pela ação dos magistrados. Todavia, a justiça
só é modificada em função da ação dos juízes, e possui graus diferentes de
modificação, relativamente à posição de classe do jurista ocupa dentro do Campo
Jurídico. Este é um paradoxo bastante característico dos embates do Direito.
É notável também que a fundamentação e o posicionamento semelhante
entre a maioria do corpo de magistrados que formam aquela Casa tem base no habitus
similar dos juízes. Este conceito, trazido por Bourdieu, compreende a formação
moral de cada ministro, tal constituição pessoal é influenciada por um conjunto
de valores trazidos da formação acadêmica, familiar e de classe. Tendo em vista
que a maior parte dos ministros são oriundos de um extrato social semelhante,
logo se apreende a razão dos posicionamento consoantes.
Por fim, a decisão do Acórdão, em
sentido procedente da ADPF-54/DF inaugura um novo entendimento e um avanço
memorável no tocante ao direito à saúde e à autonomia da vontade da mulher. Tal
posicionamento em maioria tomado pela Suprema Corte é certamente um reflexo de
uma modificação no pensamento social em relação à autonomia da mulher. Ainda, o
debate realizado para esta atualização da ordem jurídica brasileira trouxe à
luz uma profunda reflexão sobre conceitos filosóficos, como a vida e a morte.
De acordo com a Lei Civil Brasileira, a morte se dá de acordo com a cessão das
atividades cerebrais (Código Civil, Lei de Registros Públicos e Lei dos
Transplantes), contudo o conceito de vida que se toma é a respiração (Lei de
Registros Públicos), a elucidação desta antinomia entre normas de mesma
hierarquia deve ser dada pelo STF. Desse modo, não houve função legislativa do
Poder Judiciário. Enfim, apesar das críticas, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que a vida extrauterina do feto anencefálico é inviável, além de
reconhecer o sofrimento de muitas mães que são obrigadas a manter tal sorte de
gravidez mesmo sabendo que o futuro filho nascerá morto. Em razão disso, a
justa decisão, nas palavras da Ministra supracitada, foi “uma decisão possível
numa situação impossível”.
Luiz Felipe de Aragão Passos - 1º Ano de Direito/Matutino.
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