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domingo, 18 de agosto de 2019

Bourdieu, o simbolismo e o STF

O direito é, e sempre foi, motivo de controvérsia. Para Kelsen, em sua "Teoria pura do direito", a ciência jurídica deveria ser a mais imparcial possível, sem influência de nenhuma ideologia. Pierre Bourdieu critica essa visão, ao constatar que o ser humano é ideológico, e, portanto, nada nunca estará totalmente isento de uma certa parcialidade. Isso se deve ao habitus do indivíduo, conceito que define basicamente todas as expressões sociais presenciadas e adquiridas por uma pessoa desde seu nascimento. Como duas pessoas nunca vivenciam exatamente a mesma coisa, todos possuem habitus distintos. Boudieu também discorre acerca da neutralidade do direito, que ao utilizar uma linguagem formal e supostamente racional, nos leva a crer em sua eficácia simbólica e em sua universalidade. Por fim, os vereditos dos tribunais seriam o resultado de uma luta simbólica entre os participantes, sendo o vencedor o mais capaz de mobilizar suas armas simbólicas.
É nesse contexto que se aborda o recente julgamento do STF a respeito do aborto de fetos anencéfalos. Em uma poderosa luta simbólica, o aborto foi legalizado, levando em conta vários aspectos. Nota-se primeiramente a inviabilidade da vida do feto anencéfalo, cujas chances de sobrevivência são absolutamente nulas. É levada em conta a neutralidade do Estado, assim como Bourdieu nos diz, e o ministro Marco Aurelio reitera: o Estado é neutro. Não é religioso nem ateu. Logo, questões religiosas foram logo descartadas do julgamento. 
Um ponto importantíssimo dessa questão é a saúde da mãe, tanto mental, quanto física. Como a ministra Carmem Lúcia reitera, a gravidez é relacionada à vida e não à morte. Forçar uma mulher a carregar por nove meses um filho que sabe-se que certamente não sobreviverá é, certamente, um ato análogo ou mesmo de tortura propriamente dita. É interessante ressaltar os artigos que dizem respeito ao aborto no Código Penal: todos condenariam a mulher que abortasse na situação de feto anencéfalo, demonstrando a violência simbólica a que as mulheres estariam submetidas em relação ao Estado. O CP mostra nada mais que a visão de um grupo dominante, ao qual não interessa a saúde e a dignidade da mulher, mas sim os "bons constumes" da sociedade. 
A autoria do pedido de permissão de aborto de anencéfalos deve, da mesma forma, ser notada: é de uma organização de saúde. O aborto, principalmente em casos específicos como este, é uma questão de saúde pública, e que deve ser abordada como tal. Não foram grupos de direitos das mulheres que trouxeram o tópico à tona, mas sim uma  equipe de saúde. Isso mostra a importância do direito na tomada de decisões, que devem ser sempre o mais benéficas possíveis para toda a sociedade. 
Por fim, destaco os únicos votos contra a permissão do aborto: feitos por dois homens, retratam o habitus de indivíduos que cresceram em uma sociedade machista e patriarcal, que reprime e desumaniza mulheres. Em seu voto, o ministro Cesar Peluzo, um dos dois contras, chega a dizer que a carga de sofrimento e dor da mulher não compõe razão suficiente para autorizar a "aniquilação do feto anencéfalo por meio da antecipação terapêutica do parto". Logo, diz basicamente que a integridade e dignidade da mulher não são razões suficientes para a interrupção da gestação de um feto sem a menor perspectiva de vida. É um retrato claro e brutal da violência simbólica vivida constantemente pelas mulheres brasileiras, em um Estado que legitima a visão machista das classes dominantes e reduz a posição social de sua parcela feminina continuamente. Da mesma forma, é interessante notar que as duas únicas ministras (20% do tribunal), votaram a favor da legalização. 
Em suma, a visão de Pierre Bourdieu é, ainda, extremamente atual e digna de nota em inúmeras facetas do direito brasileiro. No caso analisado, por exemplo, nota-se a violência simbólica da sociedade atual, a influência do habitus na decisão de cada juiz, a luta simbólica para a conclusão de um veredito. Assim, é claro que a influência do sociológo no campo jurídico está longe de terminar.
Letícia Killer Tomazela
Direito Noturno

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