Em 2012, foi analisado
e julgado pelo STF a arguição de descumprimento de preceito fundamental No54
acerca da inconstitucionalidade de ter como crime o aborto de anencéfalos, de
acordo com os artigos 124, 126 e 128 do nosso Código Penal. O polêmico debate
contou com opiniões divergentes, envolvendo médicos especialistas e membros da
Igreja, o que demonstra a complexidade moral de tal assunto no Brasil, ainda
que seja um país laico. Por fim, por oito votos a dois, o Tribunal julgou
procedente a ADPF.
Para o sociólogo francês
Pierre Bourdieu, o Direito é uma expressão das disputas concorrenciais
permanentes dos indivíduos em um campo (espaço social). O Direito não é
simplesmente um reflexo e instrumento dos dominadores, afinal ele também é
mediador de si mesmo e é influenciado pelas pressões sociais externas. Bourdieu
ainda discorre sobre o “espaço do possível”, sendo tudo aquilo que está
estruturado dentro do campo jurídico, das doutrinas e das jurisprudências. É o
que estrutura e serve de parâmetro nesse campo. Nesse sentido, citando o voto
do ministro Ricardo Lewandowski, que julgou improcedente o pedido, afirmando que
o Congresso Nacional (“intérprete ultimo da vontade soberana do povo”) já poderia
ter alterado a legislação criminal vigente para incluir tal aborto. De acordo
com o ministro, a problemática analisada não era decisão cabível aos
integrantes do poder judiciário, sendo isso caracterizado e conhecido como
ativismo jurídico.
O judiciário é capaz de
conduzir mudanças provenientes de conflitos sociais. Nesse sentido, o
Direito se utiliza do chamado espaço do possível de Bourdieu, no qual os magistrados
interpretam o texto jurídico, ao mesmo tempo em que operam e por vezes promovem
a “historicização” da norma, outro conceito de Bourdieu, que significa adaptar
as fontes a novas circunstâncias e descobrindo novas possibilidades, o que
diverge da opinião de Lewandowski, que disse
que há um limite para se realizar essa interpretação (hermenêutica jurídica). Percebe-se
a racionalização dentro desse embate, garantindo a dialética de todo o processo
e a própria dinâmica da “luta simbólica” no campo jurídico. Dessa forma, essa
impossibilidade de “racionalidade pura” dá margem para “invenção” do magistrado.
Por fim, a ADPF
analisada demonstra que essa concorrência pelo monopólio do direito de dizer o
Direito se configura tanto um embate entre campos, quanto intra campo. No
entanto, é por conta de sua complexidade e de seus limites que faz do Direito um
importante modificador da realidade, como exemplo a coerente e justa conclusão proferida
pela procedência do pedido aqui discutido. A autorização para o aborto de
anencéfalos com certeza pôs em primeiro lugar e beneficiou, a partir daquele
momento, tanto a saúde mental quanto a física dessas gestantes.
Raquel Colózio Zanardi –
direito matutino
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