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domingo, 18 de agosto de 2019

Bourdieu e a ADPF 54


Em 2012, foi analisado e julgado pelo STF a arguição de descumprimento de preceito fundamental No54 acerca da inconstitucionalidade de ter como crime o aborto de anencéfalos, de acordo com os artigos 124, 126 e 128 do nosso Código Penal. O polêmico debate contou com opiniões divergentes, envolvendo médicos especialistas e membros da Igreja, o que demonstra a complexidade moral de tal assunto no Brasil, ainda que seja um país laico. Por fim, por oito votos a dois, o Tribunal julgou procedente a ADPF.

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o Direito é uma expressão das disputas concorrenciais permanentes dos indivíduos em um campo (espaço social). O Direito não é simplesmente um reflexo e instrumento dos dominadores, afinal ele também é mediador de si mesmo e é influenciado pelas pressões sociais externas. Bourdieu ainda discorre sobre o “espaço do possível”, sendo tudo aquilo que está estruturado dentro do campo jurídico, das doutrinas e das jurisprudências. É o que estrutura e serve de parâmetro nesse campo. Nesse sentido, citando o voto do ministro Ricardo Lewandowski, que julgou improcedente o pedido, afirmando que o Congresso Nacional (“intérprete ultimo da vontade soberana do povo”) já poderia ter alterado a legislação criminal vigente para incluir tal aborto. De acordo com o ministro, a problemática analisada não era decisão cabível aos integrantes do poder judiciário, sendo isso caracterizado e conhecido como ativismo jurídico.

O judiciário é capaz de conduzir mudanças provenientes de conflitos sociais. Nesse sentido, o Direito se utiliza do chamado espaço do possível de Bourdieu, no qual os magistrados interpretam o texto jurídico, ao mesmo tempo em que operam e por vezes promovem a “historicização” da norma, outro conceito de Bourdieu, que significa adaptar as fontes a novas circunstâncias e descobrindo novas possibilidades, o que diverge  da opinião de Lewandowski, que disse que há um limite para se realizar essa interpretação (hermenêutica jurídica). Percebe-se a racionalização dentro desse embate, garantindo a dialética de todo o processo e a própria dinâmica da “luta simbólica” no campo jurídico. Dessa forma, essa impossibilidade de “racionalidade pura” dá margem para “invenção” do magistrado.

Por fim, a ADPF analisada demonstra que essa concorrência pelo monopólio do direito de dizer o Direito se configura tanto um embate entre campos, quanto intra campo. No entanto, é por conta de sua complexidade e de seus limites que faz do Direito um importante modificador da realidade, como exemplo a coerente e justa conclusão proferida pela procedência do pedido aqui discutido. A autorização para o aborto de anencéfalos com certeza pôs em primeiro lugar e beneficiou, a partir daquele momento, tanto a saúde mental quanto a física dessas gestantes.

Raquel Colózio Zanardi – direito matutino

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