No ano de 2012, o STF julgou
inconstitucional a criminalização da interrupção terapêutica de fetos anencéfalos
após um caso, procedido na instância do Supremo, em que uma mulher grávida de
um bebê com essa condição realizou o aborto juntamente com a equipe de
executores. Considerados culpados por violar a lei que proibia o aborto, em
instâncias menores de julgamento, recorreram ao STF e pela jurisprudência da
maioria obtiveram um habeas corpus. Esse desenrolar do processo encaminhou a
discussão do aborto de anencéfalos, ao levantar votos dos ministros a favor
dessa não constitucionalidade de criminalizar, a partir de um ponto de vista que
destaca o respeito à liberdade, direitos fundamentais, saúde da mulher gestante,
significado de vida dentro do campo medicinal (científico).
Os argumentos que conduziram
essas motivações da jurisprudência são polêmicos para diversos setores
conservadores da sociedade, e que de certa maneira, também influencia nas decisões
do júri. Somado a isso, é positivo perceber que durante o processo de veredito houve
uma mudança da forma de se refletir sobre a liberdade da mulher em decidir sobre
o próprio corpo e saúde mental.
Durante toda discussão
dos ministros, é visível a convergência de opinião em relação ao fato de que a
maior consequência emocional, física, psicológica estaria sob carga da gestante
por carregar um bebê sem expectativa de vida extrauterina -o feto anencéfalo possui
um defeito na ligação do tubo neural. Portanto é um morto cerebral ainda na
barriga da mãe, que tem previsão certa de morte antes, durante ou após o parto,
como é detectado por renomados médicos ginecologistas, obstetras e associações
ligadas à medicina.
Nesse aspecto, também é
importante ressaltar a dor, angústia, tristeza, que a família desenvolve a cada
dia da gestação por saber que em vez de se prepararem para comemorar o
nascimento de mais um familiar e festejar a vida, haverá a preparação para uma
morte esperada rapidamente. Ou seja, é uma desestruturação tanto a família,
porque se é desenvolvido um laço entre os parentes do bebê, quanto a pessoa que
está gerando um peso morto em seu corpo. Por isso, o voto a favor de tal
procedimento deve ser considerado como o primeiro passo a estimular um pensamento
mais crítico da sociedade frente a liberdade de escolha da família, e em
especial, da mulher gestante de uma eminente vida, mas que deve estar
satisfeita com a situação em que se encontra.
Além dessa conjuntura,
é fundamental ressaltar que juridicamente tem direitos quem possui vida, e
como o bebê anencéfalo não manifesta vida, não existem direitos que possam
assegurá-lo um veto de não sofrer uma intervenção. Por isso, a mulher, um ser vivo,
está respaldada pela lei e deve ter os seus garantidos direitos fundamentais (à
vida, à liberdade, ao autogerenciamento), o que justifica a eliminação da
possibilidade de criminalizar a atitude, porque o feto não tem respaldo
jurídico, quanto por uma escolha de realizar o método abortivo.
A partir da descrição do
processo e decisão acerca da inconstitucionalidade de criminalizar o aborto de
anencéfalos, vê-se uma conexão do caso com o conceito de antagonismo estrutural,
de Pierre Bourdieu (1930-2002). O autor explica que o antagonismo está organizado
em dois âmbitos: o teórico e o prático, sendo que o primeiro é aplicado para ensinar
as normas, e o segundo para a avaliação de situações reais, resultando na
jurisprudência e na contribuição para uma renovação da teoria. O que se
ressalva é que não se deve contradizer as teorias do que é feito nas avaliações
de casos, em relação ao que está sendo orientado aos futuros juristas,
advogados, magistrados, e sim uma nova visão acerca das mudanças de valores,
costumes e comportamentos que a população clama, pois o direito não é uma
ciência estática e precisa estar atento aos impactos de cada consideração
jurídica, perante a sociedade.
Bourdieu também destaca
em seu trabalho o conceito do habitus, simbolizado como uma relação entre
o indivíduo e a sociedade gerada a partir da socialização. Essa interação influencia
no modo de agir de cada indivíduo e na maneira como cada um reflete sobre uma
situação, e por esse motivo, o habitus de uma sociedade é constantemente
alterado por razões de novas prioridades a serem discutidas para a vida
coletiva, o que fomenta uma discussão no âmbito jurídico. A partir disso, o
Estado interfere em normas jurídicas, e permite que cada vez mais uma discussão
atual resulte em uma autonomia para o indivíduo decidir as próprias
necessidades, e como no caso referente, o que a mulher entende como prioridade na
sua vida.
Sarah Fernandes de Castro - Direito/noturno
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