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domingo, 18 de agosto de 2019

Análise da ADPF nº54 em conjunto com as reflexões de Pierre Bourdieu


No ano de 2012, o STF julgou inconstitucional a criminalização da interrupção terapêutica de fetos anencéfalos após um caso, procedido na instância do Supremo, em que uma mulher grávida de um bebê com essa condição realizou o aborto juntamente com a equipe de executores. Considerados culpados por violar a lei que proibia o aborto, em instâncias menores de julgamento, recorreram ao STF e pela jurisprudência da maioria obtiveram um habeas corpus. Esse desenrolar do processo encaminhou a discussão do aborto de anencéfalos, ao levantar votos dos ministros a favor dessa não constitucionalidade de criminalizar, a partir de um ponto de vista que destaca o respeito à liberdade, direitos fundamentais, saúde da mulher gestante, significado de vida dentro do campo medicinal (científico).
Os argumentos que conduziram essas motivações da jurisprudência são polêmicos para diversos setores conservadores da sociedade, e que de certa maneira, também influencia nas decisões do júri. Somado a isso, é positivo perceber que durante o processo de veredito houve uma mudança da forma de se refletir sobre a liberdade da mulher em decidir sobre o próprio corpo e saúde mental.
Durante toda discussão dos ministros, é visível a convergência de opinião em relação ao fato de que a maior consequência emocional, física, psicológica estaria sob carga da gestante por carregar um bebê sem expectativa de vida extrauterina -o feto anencéfalo possui um defeito na ligação do tubo neural. Portanto é um morto cerebral ainda na barriga da mãe, que tem previsão certa de morte antes, durante ou após o parto, como é detectado por renomados médicos ginecologistas, obstetras e associações ligadas à medicina.
Nesse aspecto, também é importante ressaltar a dor, angústia, tristeza, que a família desenvolve a cada dia da gestação por saber que em vez de se prepararem para comemorar o nascimento de mais um familiar e festejar a vida, haverá a preparação para uma morte esperada rapidamente. Ou seja, é uma desestruturação tanto a família, porque se é desenvolvido um laço entre os parentes do bebê, quanto a pessoa que está gerando um peso morto em seu corpo. Por isso, o voto a favor de tal procedimento deve ser considerado como o primeiro passo a estimular um pensamento mais crítico da sociedade frente a liberdade de escolha da família, e em especial, da mulher gestante de uma eminente vida, mas que deve estar satisfeita com a situação em que se encontra.
Além dessa conjuntura, é fundamental ressaltar que juridicamente tem direitos quem possui vida, e como o bebê anencéfalo não manifesta vida, não existem direitos que possam assegurá-lo um veto de não sofrer uma intervenção. Por isso, a mulher, um ser vivo, está respaldada pela lei e deve ter os seus garantidos direitos fundamentais (à vida, à liberdade, ao autogerenciamento), o que justifica a eliminação da possibilidade de criminalizar a atitude, porque o feto não tem respaldo jurídico, quanto por uma escolha de realizar o método abortivo.
A partir da descrição do processo e decisão acerca da inconstitucionalidade de criminalizar o aborto de anencéfalos, vê-se uma conexão do caso com o conceito de antagonismo estrutural, de Pierre Bourdieu (1930-2002). O autor explica que o antagonismo está organizado em dois âmbitos: o teórico e o prático, sendo que o primeiro é aplicado para ensinar as normas, e o segundo para a avaliação de situações reais, resultando na jurisprudência e na contribuição para uma renovação da teoria. O que se ressalva é que não se deve contradizer as teorias do que é feito nas avaliações de casos, em relação ao que está sendo orientado aos futuros juristas, advogados, magistrados, e sim uma nova visão acerca das mudanças de valores, costumes e comportamentos que a população clama, pois o direito não é uma ciência estática e precisa estar atento aos impactos de cada consideração jurídica, perante a sociedade.
Bourdieu também destaca em seu trabalho o conceito do habitus, simbolizado como uma relação entre o indivíduo e a sociedade gerada a partir da socialização. Essa interação influencia no modo de agir de cada indivíduo e na maneira como cada um reflete sobre uma situação, e por esse motivo, o habitus de uma sociedade é constantemente alterado por razões de novas prioridades a serem discutidas para a vida coletiva, o que fomenta uma discussão no âmbito jurídico. A partir disso, o Estado interfere em normas jurídicas, e permite que cada vez mais uma discussão atual resulte em uma autonomia para o indivíduo decidir as próprias necessidades, e como no caso referente, o que a mulher entende como prioridade na sua vida.

Sarah Fernandes de Castro - Direito/noturno

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