O Brasil ao longo de sua história foi palco de tragédias e opressões de povos, ainda que menos brutais se comparadas outras ex-colônias européias da América do Norte e Central, ganhou disparadamente em números: Foi a colônia que mais recebeu escravizados da África e uma das últimas a abolir o pernicioso sistema de posse de seres humanos.
O sistema foi abolido em 1888, com a lei áurea. Logo após houve o golpe republicano de 1889, por esta nova república estar aliada aos interesses de latifundiários, ainda irados com a libertação de seus “bens humanos” pela pena da Imperatriz, teve-se pouca preocupação em dar condições materiais aos novos cidadãos de exercerem sua cidadania plenamente. Os que eram mais produtivos foram contratados como assalariados por seus antigos patrões das fazendas, porém uma grande massa destes libertos se tornou mendicante ou viveu de pequenos serviços nas grandes cidades brasileiras. Visto que não tinham terra, foi esse o tempo “áureo” de favelização em diversas delas.
Hoje, os trinetos destes libertos tem paridade de jure com seus pares brancos, asiáticos, judeus e árabes. Porém as condições materiais da população negra e indígena ainda são muito aquéns das deles, boa parte deles ainda habita nas velhas favelas e comunidades que seus antepassados fundaram. Como um “band-aid” a essas distorções sociais foi pensado um modelo de cotas sociais e raciais em instituições de ensino superior e técnico e também em concursos públicos, para forçar que uma parte das vagas dessas instituições de prestígio e boa educação, bem como dos empregos estáveis e moderadamente bem remunerados do serviço público brasileiro, fossem reservados para eles como uma maneira de reparação aos danos herdados por essas pessoas ainda do passado escravista do Brasil.
Independentemente de quão nobres sejam os ideais ou os efeitos desejados com a política proposta, é necessário para a asserção de uma verdade, segundo Descartes, um ceticismo sadio das informações que nos tocam os sentidos, segundo sua alusão, para que não se passe por ouro e diamante o que é na realidade um pouco de cobre e vidro. Bacon, ainda mais incisivo, apela a busca pela verdade íntima das coisas em detrimento de floreios imaginativos arbitrários em sua crítica aos antigos gregos.
Nos relatórios da Universidade Estadual do RJ, pioneira do modelo que o aplicou ainda em 2003, a UNB e UFES que compilaram dados após anos de aplicação da medida, revelaram que os estudantes cotistas, apesar de entrarem no vestibular com notas inferiores aos não cotistas, não tem grandes disparidades de performace ao longo do curso se comparados aos seus pares da concorrência ampla. Estando assim, isentos da pecha que a falsa impressão imediata, segundo Bacon distorcida da realidade por nossos ídolos da tribo, nos sugere, que assim como tiveram baixo desempenho no vestibular também o teriam em sua vida acadêmica e profissional.
Porém este modelo dá sinais de obsolescência e de algumas rachaduras estruturais se condideradas em seus fins. A aplicação das cotas raciais do ensino superior e técnico se baseia na aferição de renda baixa, de conclusão de ensino médio no ensino público e de autodeclaração racial. Dos primeiros quesitos, há algumas falhas concomitantes com as naturais de qualquer processo de verificação, com fraudes de renda, exploração de “brechas” como a frequência em curso pré vestibular de escola particular concomitante ao ensino médio em escola pública. Na “verificação” racial há sérios problemas trazidos pelas novas condições globais.
A imigração ao Brasil das últimas décadas chegou a patamares que se assemelham aos Europeus e americanos. Com os desastres naturais, guerras e conflitos político-civis na América Latina e África, o Brasil honrou seu papel histórico de acolhida aos imigrantes e refugiados. Com isso o modelo de cotas por fenótipo, como é realizada no Brasil encontra novo problema: A maioria dos refugiados, segundo dados do MJ e da OBMigra, e dos imigrantes regulares e “ilegais”, são de países como Venezuela, Senegal, Angola, Congo, Haiti e Bolívia. Cujas populações se encaixam em quase totalidade nos fenótipos raciais definidos pelas cotas, ainda que com eles o Brasil não tenha qualquer dívida a ser paga como para as nossas populações herdeiras das injustiças coloniais e escravagistas, os pretos, pardos e indígenas brasileiros tem sua cota de reparação “dividida” com estes novos brasileiros por este modelo pouco preciso de aferição.
No que se pese as dificuldades de um refugiado ou imigrante e sua posterior família no Brasil, não é razoável que se exija de nossos povos, outrora relegados ao 2º plano, que disputem suas reparações com estes novos imigrantes pela imprecisão metodológica da aplicação desta política. Para que as cotas raciais cumpram seu objetivo de reparação histórica é necessária a revisão deste modelo para que estas incipientes, mas já crescentes, injustiças não se consolidem ainda mais.
Rafael Carlos Monteiro Martinelli, 1 Sem Direito Noturno