O filme A Cor Púrpura (1985), dirigido por Steven Spielberg, faz a denúncia ao cenário de sofrimento e de violências sofridas pela atriz – Whoopi Goldperg (Celie) – que na visão de homem e de mundo do personagem Albert, seu marido no filme, é apenas “negra, pobre, feia e mulher”. Em outras palavras, no contexto do filme, início do século XX, o fato de ser negra a inferiorizava, mas esse preconceito passava por outros, que assim como esse possuem uma raiz estrutural, como o preconceito de gênero e de classe social.
A personagem Celie, antes de se casar com Albert (interpretado por Danny Glover), e de sofrer abusos durante uma existência inteira, havia sido estuprada pelo próprio pai. Desse ato monstruoso, gerou duas crianças, arrancadas dela ao nascerem. Assim, o filme relata, dentre outras coisas, o processo de desumanização imposto aos afrodescendentes, que não se reconhecem como “gente”, pois isto lhes fora imposto ao longo dos anos. Albert se fere as suas origens ao agredir a mulher e ao chamá-la de negra em tom pejorativo mostra como a cor de sua pele também o incomoda (por uma padrão imposto) e nada pode mudar isso.
Desse modo, o racismo estrutural foi edificado em pilares intransponíveis para os negros. A existência de um fortalecimento entre os próprios pares como uma categoria social fora demolida pelas elites e pelas classes média/alta. Aqueles que resistiram e forcejaram lutas pela reivindicação de direitos foram massacrados, em escala individual e global. No Brasil, há esse passado histórico de desigualdades sociais e hierarquização desde o seu descobrimento, no início do século XIX. Com destaque para o uso do Direito como meio para a legitimação de um projeto de estratificação em camadas sociais, que incluíam a população negra na base da pirâmide social.
Nessa linha de pensamento, durante a palestra promovida pelo Cadir da Unesp-Franca: “Perspectivas sobre a revisão da Lei de Cotas em 2022”, foi possível refletir a respeito dessa política pública educacional. Ora, após um decênio de sua implementação os negros ocupam poucas vagas nas universidades públicas, ainda que negros e pardos componham a maioria da população brasileira. Se por um lado, a educação é uma das vias principais para se pensar em uma nova estrutura social, por outro, sem acesso a ela, o que ocorre de fato, no País, é a inclusão precária de afrodescendentes em subempregos e à sua segregação social.
Segundo o último Atlas da Violência (2020), divulgado em São Paulo, pelo Ipea e pelo PBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), a maior parte dos homicídios ocorridos no País, nos últimos dez anos, foi de negros e pardos, com aumento de 11,5%. Em contrapartida, entre 2008 e 2018, a mortalidade de brancos, amarelos e indígenas caiu 12,9%. Assim, para cada pessoa não negra assassinada, em 2018, 2,7 negros tiveram suas vidas ceifadas, isso equivale a quase 76% de vítimas afrodescendentes. Além disso, a taxa de homicídios de negros e pardos (a cada 100 mil habitantes) atingiu o dobro de mortes em relação a de não negros (fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.
Essa é a sombra que a sociedade brasileira visualiza e que fere a dignidade humana de milhões de pessoas, seres humanos que foram tratados secularmente de maneira brutal e desigual, sem acesso igualitário à educação, segurança, cultura, lazer, etc. Sendo assim, imersa em “cavernas” (como no mito das cavernas de Platão), as populações brancas e negras estão submetidas ao obscurantismo, que nega o abismo social entre ambas, coberto por essa sombria nuvem. Essa questão, à luz do pensamento do filósofo moderno Francis Bacon (século XVII) essa dificuldade a ser superada remete a “Ídolos”, nesse casso ao “Ídolo da Caverna”, que impede a emancipação do homem, a sua verdadeira compreensão, dominação e transformação do mundo.
Por conseguinte, o real se transfigura, reveste-se de distorções, que são engendradas por outros Ídolos, que também caberiam aqui, a fim de se explicitar a negatividade de interesses políticos negativos. Esses não contemplam a coletividade, mas, ao contrário, objetivam favorecer determinados grupos historicamente privilegiados, donos do grande Capital - ídolos do foro. Para ilustrar os Ídolos do teatro, que geram representações distorcidas e teatralizadas da realidade, poderíamos citar as bancadas evangélicas, que atuam em prol do pensamento conservador.
Cabe, aqui, ressaltar a relevância de correntes protestantes antagônicas a supramencionada, que mesmo sendo inexpressivas dentre os congressistas, têm particularidades importantes e desenvolvem atividades, ainda que com um viés moralizante, em diferentes meios de estigmatização, como os presídios, com uma população carcerária majoritariamente negra. Essa reflexão que aqui se encerra vai ao encontro das palavras de Florestan Fernandes “a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça”.
Erratas da autora:
ResponderExcluir* "...desde o seu descobrimento, na metade do século XVI, passando pelos seguintes até o presente".
** "nesse caso ao Ídolo da Caverna"
*** "a negatividade de interesses políticos obscuros"
**** "Ídolos do teatro, que geram representações teatralizadas da realidade"