A legislação brasileira criminaliza o aborto, desde que a
gravidez não seja oriunda de um estupro ou que implique em risco à vida da mãe.
Em 12 de abril de 2002, o Supremo Tribunal Federal decidiu
pela legalização do aborto em caso de fetos anencéfalos, ou seja, sem
formação cerebral. Argumentando sobre a impossibilidade de sobrevida do feto
fora do útero e os riscos à saúde física e psicológica que a mulher enfrentaria
caso mantivesse a gravidez, os juízes usaram da hermenêutica jurídica para
tomarem uma decisão final.
O filósofo francês
Pierre Bourdieu, em sua obra “A força do direito: elementos para uma sociologia
do campo jurídico”, bem colocou que tais operadores do direito, que “realizam
atos de jurisprudência e contribuem para a construção jurídica”, devem, através
dessa mesma hermenêutica, usar da neutralidade e universalidade racionais para
tornar esse campo jurídico funcional. Se analisarmos o processo jurídico que
culminou na legalização do aborto para fetos anencéfalos, perceberemos a neutralidade
dos ministros na tomada da decisão final a universalidade que a nova lei traz
consigo, atingindo mulheres de todo o país e ambos sendo possíveis por meio da
interpretação que os juízes deram à lei e seus conhecimentos fora da área
jurídica, como o da medicina, por exemplo.
É importante ressaltar ainda que, detentores de um poder
simbólico, segundo o mesmo filósofo citado acima, ministros do STF ou qualquer
outro operador do direito, um advogado ou um juiz, operam no campo jurídico e
compartilham entre si um mesmo habitus, ou seja, características comuns que
derivam de um mesmo estilo de vida, vestimenta, fala e comportamento, o que
acaba por unir forças até mesmo concorrentes. Entretanto, aqueles que carregam
consigo uma bagagem econômica, cultural e científica maior, tendem a se
destacar em meio aos outros. Daí, como bem diz Bourdieu, “a pouca probabilidade
de desfavorecimento dos dominantes”. Apesar dessa máxima, o francês rejeitava o
direito como mero instrumento de classe e afastado das pressões sociais
externas. Para ele, o direito deve moldar os modos de conduta dentro da
sociedade e deve, necessariamente, abranger os preceitos lógicos e éticos da
época, não podendo ser considerado apenas como uma ciência.
Dentro dessa lógica, a decisão dos ministros do STF em abril
de 2002 representou o começo do que parte da sociedade, principalmente as
mulheres, almejavam: o direito sobre o próprio corpo e o direito de escolha. É
importante destacar, entretanto, que muitos passos ainda devem ser dados, afim
de garantirmos plenamente os direitos das mulheres, no que diz respeito ao seu
corpo e suas escolhas.
Tainah Gasparotto Bueno – Direito Matutino, turma XXXV
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