Apesar dos avanços da medicina e do movimento
feminista, a legalização do aborto, em casos de anencefalia, ainda se constitui
como um tabu na sociedade brasileira, haja vista seu fortificado alicerce
católico (desde os primórdios da colonização, com as missões jesuíticas); bem
como as variáveis na definição do conceito "vida”, de acordo com cada
campo. Em vista disso, grupos sociais se opõem a tal direito, mesmo que a
gestação, com o conhecimento da futura morte do feto, cause traumas psicológicos
à mãe; como é o caso da bancada religiosa no Congresso Nacional, e de
legisladores do sexo masculino, que acabam por decidir sobre a vida das
mulheres na elaboração de leis. Segundo Pierre Bourdieu, o Direito, tido como
seu objeto de estudo, deve evitar o instrumentalismo, ou seja, não deve estar a
serviço da classe dominante. Entretanto, em eventuais promulgações de leis,
contrárias ao aborto em tais casos se opuseram a tal idealização de Bourdieu,
haja vista que interesses das classes historicamente dominantes, a católica e a
dos homens, são sobrepostos a argumentos religiosos e à vontade das mulheres,
cerne da discussão.
As ideias de
Bourdieu também podem ser aplicadas em diferentes perspectivas de análise,
acerca do julgado ADPF 54. A priori, pelo
fato da oposição de ambos os grupos, dos favoráveis e dos contrários à legalização,
constituir uma luta pelo direito de dizer o direito, através da linguagem própria
do campos. A posteriori, também pela relação
que podemos estabelecer entre o julgado e a contraposição entre doutrinadores e
operadores. Segundo Bourdieu, os doutrinadores são os profissionais
encarregados pela elaboração puramente teórica do Direito; enquanto os
operadores associam-se ao trabalho dos magistrados, por realizar atos de jurisprudência
e priorizar a aplicação do campos em situações concretas. Sabe-se que, apesar
do aborto ser ilegal no Brasil, muitas mulheres, insatisfeitas com a gestação,
recorrem a clinicas clandestinas para tal procedimento, sendo a pratica ainda
um reflexo da desigualdade econômica: ricas possuem maior segurança, enquanto
pobres morrem ou sofrem sérias complicações, pela falta de higiene ou pela
escassez de qualificação médica. Dessa forma, uma legislação de ilegalidade do
aborto não deve ser aplicada de modo universal e dogmático, mas cada caso deve
ser analisado particularmente, a considerar os traumas que a gestação pode
causar à mãe e os argumentos médicos favoráveis à legalização. Logo, deve ser
priorizada a atuação dos operadores, e não meramente a dos doutrinadores de
Bourdieu, ou a positivação do Direito proposta por Kelsen.
Vale destacar, porém, que a crítica de Bourdieu a
Kelsen consiste no isolacionismo proposto por esse segundo autor ao direito.
Tendo em vista o julgado 54, nota-se que tal crítica é extremamente válida,
visto que o direito deve ser associado a demais áreas do conhecimento (campos),
como a medicina, já citada anteriormente.
Por fim, para uma maior democracia de fato, que
consiste na garantia de direitos das minorias, para além da vontade da maioria,
a legalização do aborto em casos de anencefalia convém.
Giovana Fujiwara - Direito diurno
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