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domingo, 17 de outubro de 2021

Por que tratamos o transexual como alguém impregnado de uma patologia?

 Em sua célebre obra Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos utiliza de notáveis palavras para se referir ao preconceito social existente acerca da homossexualidade: 

Preliminarmente lançamos opróbios àqueles indivíduos. Por quê? Porque somos diferentes deles. Seremos diferentes, ou tornamo-nos diferentes? Além de tudo ignoramos o que eles têm no interior. Divergimos nos hábitos, nas maneiras, e propendemos a valorizar isto em demasia. Não lhes percebemos as qualidades, ninguém nos diz até que ponto se distanciam ou se aproxima de nós. [...] “Penso assim, tento compreendê-los – e não consigo reprimir o nojo que me inspiram, forte demais. Isto me deixa apreensivo. Será um nojo natural ou imposto? Quem sabe se ele não foi criado artificialmente, com o fim de preservar o homem social, obrigá-lo a fugir de si mesmo?”


Lastimavelmente, ao se tratar do transexual, o tratamento estigmatizado também persiste. É com pesar que afirmo que ainda tenhamos que realizar lutas concorrenciais (debates sociais, jurídicas ou políticos) acerca dessa temática, que ainda tenhamos que combater uma transfobia, que ainda tenhamos que buscar a fundo no campo jurídico um direito fundamental que está evidente em qualquer Constituição democrática de Direito – o direito à liberdade, direito à dignidade, enfim, o direito à pessoa ser quem ela é. 

Pierre Bourdieu, um importante ativista político e conceituado sociólogo e pensador francês mencionava em suas análises acerca dessas lutas concorrências. Segundo Pierre, o campo jurídico não está isento dessas lutas. De acordo com o autor, este campo é impregnado por atores que estão constantemente envolvidos com recursos para se tentar vencer determinadas lutas. Ademais, Bourdieu estabelecia que essa dinâmica concorrencial se constitui como um elemento permanente das relações sociais – a competição entre as vontades está presente a todo momento segundo seus escritos. 

Outro termo importante proferido pelo autor é sobre o “Habitus”. Para Bourdieu, durante o percurso social o indivíduo vai aferindo recursos, sendo que estes recursos vão sendo utilizados pelos sujeitos para que possam tentar se sobrepor nesses empates entre vontades, ou seja, nessas lutas concorrenciais. O Habitus seria, portanto, uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a certas escolhas e a determinados comportamentos. Logo, torna-se possível nos questionarmos, assim como reporta-se Graciliano: “Será um nojo natural ou imposto? Quem sabe se ele não foi criado artificialmente, com o fim de preservar o homem social, obrigá-lo a fugir de si mesmo?” Esse repugnante preconceito presente no pensamento de muitas pessoas é inato ou foi imposto mediante uma matriz cultural cisgênero?

Além disso, é totalmente plausível citar que Bourdieu defende uma ciência rigorosa do Direito, que o toma como objeto de estudo, que evite o instrumentalismo (uso do Direito a serviço da classe dominante) e o formalismo (entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais). Para o pensador, o Direito é parte da sociedade, é uma ciência social, por isso está sujeito a esse fluxo das lutas sociais. Para mais, Pierre estabelece que toda sentença ou discurso do campo jurídico devem estar engendrados de uma lógica positiva da ciência e uma lógica normativa da moral.

Dessa maneira, pode-se concluir que não devemos e não podemos utilizar do voluntarismo ideológico, político, jurídico ou sociológico para fundamentar uma decisão ou argumentação no campo judicial. Para que minha sentença ou alegação tenha legitimidade, devo empregar narrativas racionais, baseadas em prerrogativas científicas e operar minhas análises de acordo com uma lógica moralista. Assim, o Direito que está sendo expresso em determinado argumento é algo que não se vincula, não de reduz a uma opinião social. Esse Direito é a própria verdade. Ele é um enunciado racional e universal. 

Assim, ao realizar uma breve avaliação acerca desses termos cunhados pelo autor, podemos perceber que de fato muitos de seus escritos podem ser presenciados na realidade social vigente. Em uma petição requerida à Fazenda pública do estado de São Paulo, um autor XXXXXXXX pleiteia cirurgia de mudança de sexo, bem como alteração do registro civil, para constar novo nome e modificação do sexo masculino para o sexo feminino. Durante a análise do referido julgado, pode-se perceber como qualquer decisão e argumento do campo jurídico estão embebidos de lutas concorrenciais e que precisam buscar substrato nas obras jurídicas para que seja uma decisão/sentença legítima. 

Ao perceber as prerrogativas utilizadas na petição, pode-se apreender como o processo foi impregnado de narrativas com substrato racional e cientificista. Não cabe ao jurista fazer juízo de valor acerca dessa temática, cabe a ele realizar uma investigação criteriosa e coerente da Constituição e permitir que TODOS os indivíduos, independentemente de qualquer diferença ou semelhança, possa ter seus direitos assegurados. É exatamente sobre o que Bourdieu menciona em seus escritos, é sobre fazer uma investigação racional e universal e não vincular um argumento a uma mera opinião social. 

Sendo assim, quando a petição consegue reunir argumentos plausíveis e legítimos acerca dessa temática, torna-se mais do que necessário que o sistema governamental brasileiro assegure a cirurgia de transgenitalização a todos os indivíduos que desejam realizar determinada operação. Cabe ao Estado brasileiro, mediante os pressupostos positivados na nossa Constituição Federal, garantir a todos a sua dignidade, felicidade, bem-estar e liberdade, pois, assim como prescrito na segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), “toda sociedade em que a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação de poderes está determinada, não tem Constituição”.



LÍVIA GOMES - NOTURNO - DIREITO (2º PERÍODO)

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