Habitus, capital e campo; estes são os nomes dos “bois”. O sociólogo Pierre Bourdieu não somente abriu a porteira para a “boiada” passar, como também nomeou os “bois”. Nascemos em um mundo programado pela classe dominante e no decorrer da vida incorporamos uma visão de mundo, acumulamos recursos materiais e imateriais da classe à qual pertencemos que dita nossas ações, o que Bourdieu denominou de “habitus” e “capital simbólico”, respectivamente. Ademais, o espaço onde as relações objetivas se manifestam em uma luta constante pela obtenção de poder simbólico, seja no campo social, jurídico ou político, estão intimamente relacionadas com o poder econômico; é o que o sociólogo nominou de “campo”. Portanto, para Pierre Bourdieu, essas estruturas objetivas condicionam a vida dos indivíduos sutilmente, onde a classe dominante impõe seu poder simbólico e adquire legitimidade através das instituições de poder.
No campo jurídico, ao historicizarmos à norma, aprendemos que o direito inaugurado com a Revolução Francesa é um direito majoritariamente burguês, na medida em que o princípio da igualdade jurídica não se caracteriza de fato, já que o proletariado continuava subjugado por um sistema emergente opressor, ou seja, o capitalismo. Diante disso, a balança - símbolo máximo do equilíbrio jurídico -, é uma ideologia que falseia o real à luz de Pierre Bourdieu, pois não há que se falar em equilíbrio em uma teia social conflituosa. O direito não está imune as interferências externas e, nesse aspecto, a classe dominada vê sua esperança renovada dentro do “espaço dos possíveis”, ou seja, até onde o direito pode se expandir caso pressionado pelas ações sociais. Nessa luta concorrencial, na maioria das vezes, prevalecerá aquele que se demostrar mais instrumentalizado com melhores recursos ou “poder simbólico”. Dessa maneira, embora a percepção de mundo social goze de relativa autonomia, todavia, se molda no âmbito de determinadas estruturas já estabelecidas, nesse contexto, estruturas estabelecidas pela classe burguesa.
Falemos do aspecto econômico, ou campo econômico na perspectiva de Bourdieu. O campo econômico é um fator que condiciona os demais campos, quer seja jurídico, social ou intelectual, na medida em que se posiciona como o eixo que engendra as disputas no interior da sociedade, o que reflete em uma competição por “vontades”, de um lado a burguesia buscando perpetuar seus privilégios, do outro, as minorias buscando a efetivação dos seus direitos dentro do “espaço dos possíveis”. No entanto, quase sempre nesse campo de disputas prevalece a classe que possui um maior capital simbólico; a burguesia. Diante disso, fica claro a independência relativa do direito ante as pressões externas, seja dos dominadores ou dos dominados.
O “capital cultural” influência nas decisões dos magistrados, cuja maioria têm sua origem na classe média. O livro Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, de 1997, elaborado por cientistas socias do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio do Janeiro (IUPERJ), fez uma análise sobre a estrutura do poder judiciário, revelando, o que nunca esteve escondido, o perfil social da magistratura brasileira, majoritariamente composta por homens brancos emanados da classe média. Toda decisão judicial carrega em si um pouco da visão de mundo do/a magistrado/a que a redigiu, ou seja, o habitus. Nota-se, dentre muitas decisões judiciais, um parecer para mostrar o quanto o habitus atua no poder judiciário. Em 2016, uma Juíza que atua na 5ª Vara Criminal de Campinas, SP, a magistrada Lissandra Reis Ceccon, redigiu uma sentença (Processo 0009887-06.2013.8.26.0114), em que condenou um réu, por infração ao artigo 157, parágrafo 3º do Código Penal, suspeito de cometer latrocínio, e nessa sentença, para justificar a dispensa do reconhecimento do acusado por uma das vítimas em juízo, pois já o tinha feito na delegacia, declarou que o réu não teria as características típicas de um ladrão, já que era branco, pele e olhos claros, dessa forma, dificilmente seria confundido pela vítima. Na percepção da juíza, um ladrão normalmente tem pele negra, logo, o réu não precisaria de um novo reconhecimento. Disse em sua decisão: “Vale notar que o réu não possuí o estereótipo padrão de bandido, possui olhos, pele e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”. Vê-se, claramente nessa decisão, que a magistrada foi influenciada pelo habitus, ou seja, sua grade de leitura de mundo racista que considera como potenciais “ladrões” indivíduos de pele negra destinadas ao encarceramento.
Portanto, não podemos falar em decisões judiciais imunes de influências externas na perspectiva de Pierre Bourdieu, o direito possui uma independência relativa em um mundo permeado por conflitos e disputas em que a classe dominante impõe seu poder simbólico. No campo capitalista, por sua vez, a burguesia dita a grade de leitura de mundo para os indivíduos (habitus). É impossível uma racionalidade pura na forma da lei, na forma da doutrina, sempre existe uma margem a inventividade e a criação do magistrado. “(...) o juiz, ao invés de ser sempre um simples executante que deduzisse das leis as conclusões diretamente aplicáveis ao caso particular, dispõe ante de uma parte de autonomia que constituíssem dúvida a melhor medida da sua posição na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica”. Logo, o habitus é um condicionante onipresente nas decisões humanas, e nesse aspecto, o ordenamento jurídico não se excluí. A “boiada” de Pierre Bourdieu continua passando, no entanto, essa boiada tem nome.
BIBLIOGRAFIA:
Site: Conjur Jurídico. Juíza de Vara Criminal diz que réu não parece bandido por ser branco. Pesquisa em 16 de out. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-01/juiza-campinas-reu-nao-parece-bandido-branco
Edson dos Santos Nobre
Direito Noturno - 2º Semestre
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