Processo disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/decisao-juiza-franca-cpc-mp-sp.pdf>
Pierre Bourdieu foi um dos nomes
mais emblemáticos da sociologia francesa contemporânea, sendo titular da
cátedra de sociologia no Collège de France e buscando, ao longo de sua trajetória,
conciliar a análise da realidade objetiva com a da subjetividade – o que
convencionou-se chamar de “construtivismo estruturalista”. No construtivismo
encontra-se o habitus, que pode ser
entendido como os esquemas mentais de percepção, pensamento e ação que
caracterizam o comportamento dos indivíduos. Enquanto o conceito de
estruturalismo implica em uma formação denominada campo, que é sistêmica e age sobre os agentes sem que eles tenham
consciência ou possam nela intervir.
Ademais, é importante notar as
influências sofridas por Bourdieu. De acordo com Philippe Corcuff (As novas
sociologias, p. 56): “[...] da obra de Marx, Pierre Bourdieu tomou a noção de
realidade social como um conjunto de relações de forças entre grupos sociais
historicamente em luta uns com os outros [...] da obra de Max Weber a noção de
que a realidade social é também um conjunto de relações de sentido, que ela
tem, então, uma dimensão simbólica”. No quesito do habitus, há evidentemente uma retomada das ideias de Émile
Durkheim, uma vez que nesse conceito, as estruturas sociais se imprimem na
mente dos indivíduos e se interiorizam. Essas estruturas interiorizadas se
desenvolvem ao longo da vida – iniciando-se na infância, como herança da
família e da educação, e prolongando-se para a vida adulta, o que constituí uma
espécie de acumulação de bagagem que possibilitará as diversas ações e atitudes
adotadas pelo sujeito.
Mas é no conceito de campo que reside
um dos pontos mais importantes desse sociólogo francês. Por campo, como já
mencionado, pode-se depreender a ideia de esferas autônomas da vida em
sociedade, oriundas de uma construção histórica e que envolvem relações sociais
e de produção próprias, além de sistemas hierárquicos e de dominação – ou seja,
há o campo jurídico, econômico, político, etc. Isto tudo posto pode ser
encontrado na análise que o sociólogo faz do Direito e mais precisamente, do
campo jurídico, em seu livro “O poder simbólico”, no capítulo VIII, chamado de
“A força do direito – Elementos para uma sociologia do campo jurídico”. Logo no
início do texto, Bourdieu, ao pensar uma ciência rigorosa do direito, busca se
distanciar do formalismo e do instrumentalismo. O formalismo remonta à teoria
pura de Kelsen, estando a autonomia do Direito distanciada da realidade social;
e o instrumentalismo remonta a Marx, que conceberia o Direito “como um reflexo
ou um utensílio ao serviço dos dominantes” (BOURDIEU, p. 209).
Ainda no texto, Bourdieu (p. 224)
diz que “[...] o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado
de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e
sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo desigual, os
meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das <regras
possíveis>, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas simbólicas,
para fazerem triunfar a sua causa. ” E prossegue: “O trabalho de
racionalização, ao fazer aceder ao estatuto de veredicto de uma decisão
judicial que deve, sem dúvida, mais às atitudes éticas dos agentes do que às
normas puras do direito, confere-lhe a eficácia simbólica exercida por toda a
accção quando, ignorada no que têm de arbitrário, é reconhecida como legítima”.
Logo, a partir desse trecho e dos
conceitos elaborados por Bourdieu já mencionados, é possível analisar a
sentença proferida pela juíza Dra. Adriana Gatto Martins Bonemer. O Ministério
Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública contra o médico Matheus
Gabriel Braia, ex-aluno da Universidade de Franca (UNIFRAN), que durante o
trote da instituição em questão conduziu o seguinte juramento: "Eu prometo
infernizar qualquer um dos bastardos, invejosos de subcursos como os da odonto
e dos copiões de merda da FACEF, chupa FACEF, sem nunca dar razão a nenhum
daqueles burros, filhos da puta, desgraçados de merda! E prometo usar,
manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade,
sem nunca ligar no dia seguinte. As bixetes: Eu prometo nunca entregar meu
corpo a nenhum invejoso, burro, frouxa, filho da puta da Odonto ou da Facef.
Repudio totalmente qualquer tentativa deles se aproveitarem e me reservo
totalmente a vontade dos meus veteranos e prometo sempre atender aos seus
desejos sexuais. Compreendo que namoro não combina com faculdade e a partir de
hoje sou solteira, estou à disposição dos meus veteranos. ”. “Trecho de vídeo:
inaudível... por suas reputações, mesmo que eles sejam desprovidos de beleza ou
cheire a ovo vencido. Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa de coito
de veterano (inaudível...) mesmo que ele cheire cecê vencido e elas, a perfume
barato."
Mais revoltante do que o
juramento que faz apologia ao estupro (feito por um médico que muito
provavelmente atende mulheres), é a sentença da juíza em questão. Fica
evidente, durante todo o julgado, que a atenção da Dra. Bonemer não se volta ao
acusado e sim, aos requerentes do processo, numa constante tentativa de deslegitimá-los.
Em síntese, um dos pontos trazido pelo requerente, o MPSP, é: “o requerido,
ex-aluno da UNIFRAN, explorando momento de comemoração por aprovação em
vestibular de Medicina na referida instituição, fez com que calouros entoassem,
coletivamente, durante o trote universitário, a pretexto de se tratar de hino,
expressões de conteúdo machista, misógino, sexista e pornográfico, expondo-os à
situação humilhante e opressora e ofendendo a dignidade das mulheres ao
reforçar padrões perpetuadores das desigualdades de gênero e da violência
contra as mulheres”. De modo que toda a argumentação da juíza é pautada em uma
visão pessoal, claramente antifeminista e conservadora, dando a entender como
absurdo o desejo de indenização por danos morais, pois, como dito pela
magistrada: “A inicial retrata bem a panfletagem feminista, recheada de chavões
que dominam, além da esfera cultural, as universidades brasileiras. É bom
ressaltar que o movimento feminista apenas colaborou para a degradação moral
que vivemos, bem exemplificada pelo "discurso/juramento" que ora se combate
”
Dessa forma, a autoridade em
questão julgou improcedente a ação, após sustentar seus argumentos em figuras
como a da deputada estadual de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, do PSL,
que dentre as diversas polêmicas em que está inserida, ficou conhecida
principalmente por propor que os alunos filmassem professores que estivessem
praticando “doutrinação”. Portanto, voltando-se a Bourdieu, a decisão da juíza
seria proveniente de nada menos do que o habitus
– as estruturas estruturadas e estruturantes - por ela construído ao longo de
sua vida. Conhecedora da lei e detentora dos meios jurídicos disponíveis, como
a linguagem jurídica, e inserida em um campo jurídico marcado por dominação e
hierarquias, a magistrada pauta sua decisão e utiliza os meios e recursos
jurídicos disponíveis de forma a validar a sua visão de mundo. De maneira que estando
na posição de poder que ocupa, há a tentativa de impor essa visão pessoal aos
outros e legitimá-la em um âmbito jurídico, afinal, é ela que profere as
sentenças que afetam as vidas de outras pessoas.
Evidentemente, o caso gerou revolta e uma nota
de posicionamento da OAB Franca, que em seu início diz: “Não existiu, por parte
da sentença, fundamentação compromissada com o papel desempenhado pela
estrutura legislativa, judiciária e acadêmica na construção de políticas
públicas e práticas igualitárias em todos esses ambientes". "O
discurso utilizado pela decisão nos demonstra como o sistema de justiça, também
na figura de magistradas e magistrados, tem resistido em garantir uma prestação
jurisdicional nos casos que envolvem as variadas violências de gênero. ”.
Laura de Melo Ruas
Direito Diurno
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